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    'Não queremos a tradição retrógrada nem a utopia', diz Pritzker português

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    10/10/2016 02h25

    Na superfície, a arquitetura de Eduardo Souto de Moura é um exercício de sutileza, de linhas retas e formas básicas que se fundem com o ambiente.

    Obras como o metrô do Porto, o estádio de Braga, em Portugal, e o mercado depois transformado em centro cultural na mesma cidade fizeram a fama do português, consagrado com o Pritzker, maior prêmio mundial da arquitetura, como ponta de lança de um novo modernismo.

    Nacho Doce - 28.mar.2011/Reuters
    Estádio de Braga, obra de Eduardo Souto de Moura na cidade portuguesa
    Estádio de Braga, obra de Eduardo Souto de Moura na cidade portuguesa

    É como se suas construções, por mais inovadoras que pareçam, tivessem orgulho de suas raízes profundas na obra dos heróis da vanguarda que marcou o século 20, de Le Corbusier a Mies van der Rohe.

    Mas ele rejeita isso. Em São Paulo, onde participa da Bienal Ibero-americana de Arquitetura e Urbanismo, Souto de Moura diz se sentir um pós-moderno, alguém que celebra a "sedimentação" da arquitetura. Na visão dele, a disciplina se misturou com outras e agora volta à sua essência.

    Leia a seguir os principais trechos da entrevista do arquiteto à Folha.

    *

    Folha - Por que você rejeita o rótulo de modernista e quer ser identificado como pós-moderno?
    Eduardo Souto de Moura - Uso uma caligrafia retirada do movimento moderno. Mas não quer dizer que eu seja moderno, posso usar uma sintaxe moderna sem ser moderno, ou ir ao vocabulário do moderno. Não me identifico com o período heroico do modernismo, que queria construir um homem novo, uma geografia nova, aquilo que Le Corbusier fazia em seus croquis do Rio, de Buenos Aires, de Bogotá. Não me identifico porque isso está desajustado à cultura contemporânea.

    Talvez a resistência dos arquitetos em chamar você de pós-moderno seja porque esse termo traz à mente a visão de Las Vegas.
    Está bem. Las Vegas foi proposta por um arquiteto americano e é muito adequada, porque enquanto [o português Álvaro] Siza usa Alvar Aalto como referência e a arquitetura popular portuguesa, é evidente que [os estudiosos americanos do pós-modernismo] Robert Venturi e Denise Scott Brown não usam a arquitetura portuguesa. Usam a americana popular, tal qual Andy Warhol não usava Caravaggio, mas usava a serigrafia.

    Sua ruptura com o moderno então tem a ver com certo desapego à ideia de verdade dos materiais, a noção de estrutura como espetáculo puro?
    Na verdade, na arquitetura, a ética nem sempre coincide com a estética, tem que ser manipulada. Tem que haver algo de mentira para ser belo. As quinas dos edifícios do Mies van der Rohe, por exemplo, são falsas. Tem pilares de concreto com ferro, mas depois eles são revestidos com materiais. É só para dar elegância, como os vestidos das pessoas gordas, com pregas para fingir que ficam mais elegantes e acentuar a verticalidade.

    Eu assumo parte do verdadeiro, depois noto que essa verdade não aguenta e introduzo um erro para ficar mais natural. Fiz isso uma casa no Algarve, que é um quadrado, com seis quadrados de cima abaixo e seis no alto da fachada, então são 36 quadrados no total. Mas fiz o último deles torto. É para dizer que é feito pelo homem.

    Você começou sua carreira trabalhando com Álvaro Siza e ainda trabalha com ele. Como é a relação de vocês?
    Somos muito diferentes, mas trabalhamos bem. Temos umas regras. Trabalhamos na mesma mesa e assentamos as regras. Ou vamos jogar damas ou xadrez. Um avança e outro tira.

    Os projetos que vocês realizaram no Porto revitalizaram a cidade sem abalar sua escala urbana. São marcas de extrema sutileza. Essa era a intenção de vocês? Tornar a arquitetura quase invisível?
    O que nós pretendemos é isso. Apesar de as linguagens e referências não serem as mesmas, temos formações e gerações diferentes, mas não queremos nem copiar a tradição, que era retrógrada e reacionária, nem queremos fazer a utopia só para ser diferentes, portanto o projeto é tentar encontrar essa adequação com materiais, programas e formas atuais. As formas quase sempre são universais, são sempre as mesmas, e os materiais variam. Ou com os mesmo materiais podemos fazer formas diferentes.

    Isso é o que eu entendo por arquitetura. A arquitetura não tem que se impor à geografia, mas também não tem que se ausentar ou ser escondida. É insistir em adequação. O natural e o artificial só ganham quando convivem. O Parthenon é mais bonito e só ganha porque está na Acrópole, feito da mesma pedra, e a Acrópole, que é uma pedra bruta, só ganha por ter o Parthenon em cima. Natureza e artefato se completam. Não é nenhuma melhor que a outra.

    Essa observação também está muito próxima daquilo que diz Georg Simmel sobre as ruínas, a ideia de que um prédio em ruínas é o flagra do momento em que a vontade do homem entra em sintonia com a força da natureza.
    É por isso que gosto muito de ruínas. E quando não sei fazer uma fachada, faço um corte, como o estádio de Braga. Faço um corte, invento uma escada. A fachada é um corte, e, no fundo, a ruína é a apresentação dos cortes de um edifício. Tem a ver com o [artista norte-americano Gordon] Matta-Clark, quando ele próprio provocava os cortes e as ruínas. É uma espécie de aceleração. Eu fiz isso no mercado. Acelerei o tempo. É o único edifício em que um arquiteto constrói uma obra e depois constrói outra com as ruínas do que ele mesmo fez. É como aqueles túneis de aceleração das partículas.

    Matta-Clark ficou famoso por cortar prédios e casas ao meio. Sua obra se inspira nele?
    Ele me interessa pelos cortes. Quando via os desenhos do [arquiteto italiano Giorgio] Grassi, achava mais bonito os cortes que os projetos construídos. Gosto mais das plantas. É como uma lição de anatomia. Aprendemos mais com uma lição de anatomia do que com a contemplação dos objetos. Gosto muito de Matta-Clark. Ele é uma espécie de Lucio Fontana da arquitetura.

    Você é um dos destaques da atual Bienal de Arquitetura de Veneza. Lá também estão muitos jovens arquitetos portugueses. Acredita que Portugal vive uma boa fase na arquitetura?
    Há uma nova geração muito boa, só é uma pena que não haja trabalho para eles mostrarem que são muito bons. Também há um fenômeno interessante no Porto, uma espécie de cruzamento da arquitetura do Porto com a arquitetura suíça. Nunca pensei nisso, mas acho que há uma empatia entre esses tipos de arquitetura. Considero essa nova geração de arquitetos do Porto os melhores arquitetos, e todos trabalharam na Suíça.

    Em Veneza, a ideia central da mostra também tinha a ver com a noção de que a arquitetura ecológica e sustentável não pode deixar de ser feia. Acredita que há um resgate da preocupação com a forma na arquitetura atual?
    Arquitetura é arquitetura, uma disciplina autônoma. Tem a ver com a beleza da forma, depois tem que ter outros componentes. Tempos atrás, falavam em arquitetura inteligente, como se o edifício Seagram fosse estúpido. Depois veio a arquitetura ecológica, como se um bom edifício não precisasse funcionar. Portanto há muitos adjetivos relacionados a modas que não me interessam. A ideia agora é reconstruir a disciplina com o material que existe. Há um escritor e pintor português que disse uma coisa que eu gosto muito. Almada Negreiros diz que não estamos no tempo de inventar as palavras. Estamos no tempo de reinventar as palavras que já foram inventadas.

    Há uma espécie de sedimentação da arquitetura. A arquitetura se misturou com outras disciplinas, e, quando aquilo acalmou, o que ficou no fundo do rio é a poesia. O que fica é a construção de uma nova disciplina. Passou um pouco o período de certo exibicionismo, o entusiasmo da construção de ícones. Estamos voltando à arquitetura como resolução de problemas. Mas é mais a ideia de uma construção também bonita e bela, que cria emoções. Essa é a mais-valia que faz com que uma construção seja arquitetura.

    Ou seja, a crise econômica que acabou com a folia dos 'starchitects' deu novo fôlego à arquitetura?
    A crise indica a debilidade dos dogmas anteriores, mas prepara a consciência para novos projetos. Nesse sentido, a crise é salutar.

    Que projetos você está desenvolvendo agora?
    Um dos projetos que eu gosto mais é uma central elétrica no norte de Portugal. Ali tem a pequena escala e a grande escala. Ela altera a geografia, árvores, morros, aterros, níveis d'água, mas depois também exige que se desenhem os puxadores, o corrimão da escada. Essa alternância é o que eu gosto, da pequena escala e grande escala que se tocam.

    Não acreditavam que eu pudesse fazer projetos nessa escala. Isso mudou bastante. Agora estou fazendo um concurso para um anexo do Museu do Prado graças ao Pritzker. É um edifício que se chamava Palácio do Bom Retiro, um edifício antigo. Vai haver um concurso agora para a remodelação e convidaram arquitetos.

    Por que a arquitetura de museus se tornou uma das vertentes mais expressivas da arquitetura contemporânea?
    Fazer museus é o que tem mais visibilidade, em especial em países com tantas obras guardadas, que não produzem mais-valias culturais e econômicas. É uma boa oportunidade de melhorar edifícios, cidades e pôr obras guardadas à disposição da população.

    Você também desenvolve um projeto no Brasil. Como será isso?
    É o projeto de um jardim, na praça Portugal, em São Paulo. Ele foi cortado por uma rua e parte dele virou o estacionamento de um McDonald's. É muito difícil fazer o projeto porque o terreno está tudo fragmentado, é um trapézio e um triângulo. A ideia é fazer um jardim, um objeto que fale da relação de Portugal com o Brasil.

    Mas há um discurso um bocado hipócrita. Dizem que somos países irmãos, que falam a mesma língua, mas acho que não se dão os portugueses com os brasileiros. Existe uma hipocrisia nessa ligação. Já fiz vários desenhos, mas não estou contente com eles. Tem que ser algo mais abstrato e universal. Não pode ser muito evidente, senão fica ridículo e primário. Quero ir lá hoje para apanhar o tom, como antes do concerto os músicos ficam atrás dos panos tentando apanhar o tom.

    BIENAL IBERO-AMERICANA DE ARQUITETURA E URBANISMO
    QUANDO de 10/10 a 12/10, programação em xbiau.com
    ONDE Auditório Ibirapuera, pq. Ibirapuera, portão 3
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