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    Primeira mostra póstuma de Tunga mantém mistério que marcou sua obra

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    11/10/2016 02h00

    Tunga parecia obcecado por dedos e luas em seu último ano de vida. Quase todas as esculturas que fez antes que um câncer levasse à sua morte em junho passado têm essas formas de esferas e hastes terminando em unhas ou às vezes só formações cilíndricas, meio fálicas, que saltam de dobras que lembram pétalas de flor ou orelhas retorcidas.

    Na entrada do anexo da galeria Millan, que abre agora a primeira mostra póstuma do artista, está uma gigantesca instalação em que dois dedos de sete metros de altura se escoram em estruturas metálicas vazadas –um deles está grávido, com uma espécie de caroço a meio mastro, e o outro parece envolto em folhas.

    Da escala monumental à mais intimista, os trabalhos dessa última exposição pensada pelo artista parecem se tornar mais delicados do pátio externo até a última sala da mostra, sendo a primeira galeria uma zona de transição, aquilo que Tunga pensou como um "mar de luas".

    No chão, formas de gesso com volumes e reentrâncias circulares lembram astros desconjuntados que desabaram do céu. Equilibradas sobre finos pedestais estão repetições das mesmas esculturas, só que em bronze, instaurando uma hierarquia entre os materiais da mesma forma que a astronomia tem suas ordens de estrelas e satélites.

    Mas nada na obra de Tunga, nem mesmo nessa série derradeira, aflora de imediato. Ele se despede na chave enigmática com que construiu seu trabalho ao longo de décadas, ancorado num erotismo cósmico e na sensualidade de formas exasperantes.

    Tunga não achava que fosse morrer agora. Nos últimos meses, seu ateliê trabalhou a todo vapor, dando a sensação de energia latente com que essas obras vêm a público.

    Descansando sobre pedestais, algumas delas ganham densidade maior, como peças de design estáticas, formas puras que se entregam à contemplação. Mas um movimento insinuado de dedos prestes a se tocar, reforçado pelas sombras que essas esculturas projetam nas paredes da galeria, dá o aspecto de performance que o artista sempre pensou em sua obra.

    "Elas guardam uma memória performática", diz Fernando Santana, assistente que trabalhou mais de uma década ao lado do artista. "É como um verbo que ficou parado no ar."

    Na sala seguinte, aliás, uma escultura deve ficar suspensa numa rede, repetindo um gesto que atravessa a obra de Tunga. Algo entre o langor e a morte, essas obras em repouso instável do artista ilustram como a dimensão erótica, tanto no sentido de libido quanto de algo cheio de vida, de suas esculturas esbarram numa descida às trevas, um submundo de esqueletos que tantas vezes já deram as caras em suas instalações.

    Mas não há ossos nem caveiras nessa última exposição pensada por Tunga. Ficou só a carne –músculos, seios, dedos, lóbulos, pétalas, vulvas. É como se perto da morte ele perseguisse um vocabulário de nervos à flor da pele.

    No caso, é uma vida que se multiplica. Todas as esculturas seguem uma lógica de espelhamento, ou seja, são dedos que partem do mesmo ponto e se estendem em simetria até se tocar ou que se projetam em direções opostas. Todas juntas no chão, as peças criam uma espécie de vibração que se alastra pelo conjunto, como órgãos que se expandem ou se contraem, respirando no mesmo ritmo.

    Talvez seja o mais próximo possível daquilo que André Millan, galerista que representou Tunga por quase toda a sua carreira, chama de mostra com a escala e a frequência que ele desejava.

    No prédio principal da galeria, na mesma rua da Vila Madalena, está um complemento à exposição –as caixas espelhadas com garrafas e cristais que atulhavam a casa e o ateliê de Tunga no Rio.

    Millan diz que essa não é uma homenagem nem uma retrospectiva. É a despedida de um artista que agora descansa longe dos holofotes. Uma mostra maior dele virá nos próximos anos, mas, por enquanto, a ideia é sair de cena.

    TUNGA
    QUANDO abertura em 15/10, às 12h; de ter. a sex., das 10h às 19h; sáb., 11h às 18h; até 12/11
    ONDE galeria Millan, r. Fradique Coutinho, 1.360 e 1.416, tel. (11) 3031-6007
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