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    Em 54 anos, Bob Dylan se reinventou e cantou da política ao louvor a Deus

    IVAN FINOTTI
    EDITOR DE CULTURA

    14/10/2016 02h00

    Em janeiro de 1965, o semanário musical londrino "Melody Maker" publicou uma manchete rimada, como se fosse uma canção: "Beatles say: Dylan shows the way" (Beatles dizem: Dylan aponta o caminho).

    Em plena beatlemania, Dylan foi o gatilho que desencadeou a maioridade no rock, transformando toda a música popular dos anos 1960.

    O que eram simples canções de amor entre meninos e meninas perto de baladas políticas como "Blowin in The Wind" (1963) e "The Times They Are a-Changing" (1964)?

    E Dylan ainda era, nessa altura, um cantor de música folk. A segunda volta do parafuso estava logo ali na frente, quando abandonou o violão e plugou a guitarra no amplificador (sendo chamado de "Judas" por seu público). Seria uma avalanche.

    Em março de 1965, ele lançou "Bringing It All Back Home", com o lado A repleto de músicas pesadas e solos de guitarra. O título do álbum dizia exatamente isso: ele estava "trazendo tudo de volta para casa", a América, que havia emprestado o rock aos ingleses e via agora o sucesso mundial dos Beatles e Stones, a tal da "invasão britânica".

    Cinco meses depois, Dylan colocou nas lojas seu sexto LP, "Highway 61 Revisited", que abria com a monumental "Like a Rolling Stone", talvez sua maior canção.

    E após dez meses, em junho de 1966, engatou sua obra-prima, "Blonde on Blonde", um disco duplo com muitas canções sem refrão e que termina com uma balada de amor de 11 minutos e meio no lado D.

    FALSO ÓRFÃO

    Dylan nasceu Robert Allen Zimmerman em 24 de maio de 1941, em Duluth, Minnesota, norte gelado dos Estados Unidos à esquerda dos Grandes Lagos.

    A ascendência da família é da Ucrânia e da Lituânia e Dylan teve uma infância normal, exceto por não largar o rádio. Teve bandas na adolescência e entrou na Universidade de Minnesota no final de 1959, a pedido dos pais.

    Um ano depois, porém, anunciou que queria ser cantor folk. Seus pais lhe deram um ano para tentar a carreira. Depois disso, deveria voltar e se formar.

    O rapaz seguiu para Nova York com 19 anos, em janeiro de 1961 e tudo aconteceu como num conto de fadas. Começou a cantar nos bares do Greenwich Village e chamou a atenção da comunidade artística.

    Ainda era um adolescente, mas soava como um velho no microfone. Em março de 1962, lançava seu primeiro disco, basicamente com covers, e doze meses depois já era um sucesso nacional. Na capa, parece um bebê de bochechas rosadas e boina.

    Dylan havia tirado seu nome do poeta galês Dylan Thomas (1914-1953), mas essa não foi sua única invenção. Ao chegar em Nova York, disse que era órfão, que havia sido abandonado pelos pais, que correra todos os Estados Unidos com o violão nas costas, como um artista sem teto etc.

    A fantasia de vagabundo com falso sotaque acabou quando uma repórter da revista "Newsweek" entrevistou os pais de Dylan, que o artista havia mandado trazer de Minnesota para Nova York para uma apresentação esgotada no Carnegie Hall, no fim de 1963.

    Exposto como mentiroso e, pior ainda, como um garoto judeu de classe média, ele desmoronou. Considerou sua carreira acabada, mesmo porque transitava numa área, a folk music, em que a verdade era tão cara.

    Mas nada aconteceu. Suas músicas provaram ser maiores que suas alucinações. Havia muita coisa saindo daquela cabeça.

    Em seus primeiros cinco anos de carreira, Dylan criou um repertório inigualável, com canções que não eram apenas canções, e sim poesias que traziam sempre uma virada no final, uma sacada, uma moral, uma piada.

    Dylan cantou sobre política, costumes, separação, amor, crítica social, história, amor, ódio e até sobre o noticiário, quando reproduziu a morte de uma empregada por um fazendeiro em Baltimore, em "The Lonesone Death of Hattie Carroll" (1964).

    Sua raiva, entretanto, era imbatível: "Você é muito cara de pau/ Ao dizer que é meu amigo/ Quando eu estava por baixo/ Você ficava lá zombando", começava, em "Positively 4th Street" (1965).

    Ou em "Like a Rolling Stone", do mesmo ano: "Era uma vez você se vestia muito bem/ Jogava moedas aos mendigos quando estava no auge, não é?/ Agora você não fala tão alto/ Agora você não parece tão orgulhosa/ Ao ter que esmolar a sua próxima refeição".

    Foi essa fase que Martin Scorsese documentou em "No Direction Home" (2005). O fato de que tinha uma voz estranha, ruim para alguns, e que não se importava muito com arranjos, abriu caminho para outros artistas se servirem de sua vasta produção.

    Alguns estouraram com suas músicas, voando alto nas paradas norte-americanas, como Peter, Paul & Mary ("Blowin' in the Wind", segundo lugar em 1963) e The Byrds ("Mr. Tambourine Man", primeiro em 1965).

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    ACIDENTE

    Em 1966, Dylan já era um astro mundial, apontando caminhos para todos. Tinha centenas de shows marcados, um livro de poesias para entregar (seria "Tarântula"), seguidores invadindo sua casa, repórteres noticiando seu cotidiano, celebridades querendo conhecê-lo, textos analisando sua vida e havia acabado de se casar.

    Na metade daquele ano, ele sofreu um acidente de moto perto de sua casa, em Woodstock, região florestal no Estado de Nova Yok, ao norte da capital. Divulgou-se na ocasião que ele estava severamente machucado, tendo quebrado quatro vértebras próximo ao pescoço. Mas é possível que tenha apenas aproveitado a chance para se fingir de quase morto.

    Cancelou toda a agenda e se retirou para uma sonhada vida de casado. Entre 1966 e 1969, teria três filhos e uma filha com Sara Lowndes, ex-modelo e atriz que havia sido coelhinha da "Playboy". Ele também adotou a filha do antigo casamento dela.

    Só voltaria regularmente à estrada em 1974. Mesmo assim, Dylan continuou apontando caminhos. Enquanto toda a turma do rock, liderada pelos Beatles, se enfurnava nos estúdios fazendo experimentações com aparelhos que desembocariam no psicodelismo, Dylan ignorou todo esse movimento.

    Trocou o rock por música caipira, canções de raízes, trilhas sonoras e gravações mal feitas num porão. Gravou com Johnny Cash ("Girl from the North Country", 1969), compôs músicas instrumentais ("Wigwam", 1970) e até brincou de jazz ("If Dogs Run Fere", 1970).

    Lançou sete discos nessa fase, um deles duplo, chamado "Self Portrait", em 1970, entendido por alguns críticos como uma brincadeira sem graça, devido a covers de clássicos estranhamente cantados, como o de "Blue Moon".

    Dylan foi declarado artisticamente falido diversas vezes desde então. De vez em quando lançava um single de sucesso como "Lay Lady Lay" (1969), "If Not for You" (1971) e "Knockin' on Heaven's Door" (1973). E um novo gênero de música, o country rock, começou a partir dessa sua guinada para o campo.

    São dessa época também as gravações do também duplo "The Basement Tapes", canções inéditas registradas porcamente num porão próximo à sua casa em Woodstock, e que serviam basicamente para outros artistas lançarem. Essas faixas foram as responsáveis pelo surgimento de uma novidade: o disco pirata.

    Fãs enlouquecidos com a informação que Dylan estava gravando sem lançar colocaram as mãos nos registros e fabricaram discos ilegais. A ação fez com que o artista reunisse uma coletânea dessa época anos depois, em 1975, sob o nome de "The Basement Tapes".

    DEUS NO COMANDO

    Aquele ano, entretanto, foi marcado por outro disco, muito mais importante: "Blood on the Tracks". Conforme diz o nome (sangue nas faixas), Dylan estava sangrando. Seu casamento estava chegando ao fim, assim como seu idílio romântico numa região bucólica.

    O disco traz sofrimento por todos os lados, sentimentos de perda, corações partidos, devastação familiar, um compêndio, enfim, de dor. Um trecho de "Idiot Wind" dá o tom: "Vento idiota/ Soprando a cada vez que você move a boca/ Soprando a cada vez que você mexe os dentes/ Você é uma idiota, baby/ É incrível que ainda saiba como respirar". A raiva de Bob Dylan estava intacta.

    Ele havia voltado aos palcos em 1974 e seguiria firme em turnê com o lançamento de "Desire" (1976), que incluía "Hurricane", sobre a história real de um boxeador acusado de um assassinato que não teria cometido. Esse disco e o seguinte, "Street Legal", de 1978, trariam os últimos grandes suspiros do artista na década.

    Dylan emendaria, então, uma trilogia de álbuns de louvor a Jesus, motivados por sua conversão ao cristianismo. Apesar de trazer alguns boas canções, trata-se da fase mais constrangedora do ídolo, aquela que os fãs gostam de esquecer.

    A partir dos anos 1980, Dylan começou a perder a relevância em termos de composição, se não em termos de quantidade, pelo menos em qualidade. Em 30 anos, lançou doze discos de canções inéditas, mas nenhum deles não está à altura de sua obra dos anos 1960 e 1970.

    O que fez de importante foi criar um novo modelo de negócio. Assim como havia sido (indiretamente) responsável pela criação da pirataria, em 1985 colou nas lojas uma caixa com cinco LPs chamada "Biography".

    Apesar de algumas sobras de estúdio, o pacote praticamente reembalava os grandes sucessos do artista em uma roupagem luxuosa. Diferente de uma coletânea comum, a caixa trazia um livro com a história de cada canção e mostrou-se um sucesso de vendas.

    Em 1988, participou do Traveling Wilburys, grupo formado por ele, George Harrison, Jeff Lynne, Roy Orbison e Tom Petty.

    Desde então, ele (e todos os outros artistas de primeira linha) tem se dedicado a lançamentos luxuosos de shows perdidos, gravações raras e reedições com discos extras de seus grandes momentos.

    Nos anos 1990, Dylan criou uma coleção chamada "The Bootleg Series" (série pirata) que já chegou a nove volumes, além de quatro coletâneas, três discos ao vivo (4) e a mixagem em mono de seus primeiros oito LPs, atingindo a espantosa cifra de 35 CDs (atualizado até novembro de 2012). É o mesmo número de discos de estúdio que lançou em 50 anos de carreira.

    Em 2015, lançou "Shadows In The Night", uma compilação de covers de Frank Sinatra (1915-1998). Em maio deste ano, Dylan voltou à mesma fonte e colocou no mercado "Fallen Angels", disco com 12 canções, sendo 11 delas regravações do mesmo Sinatra.

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