• Ilustrada

    Saturday, 04-May-2024 20:12:33 -03

    Em seu primeiro livro, Paola Carosella conta sua história em receitas

    LUIZA FECAROTTA
    CRÍTICA DA FOLHA

    19/10/2016 02h00

    Paola Carosella está descalça, sentada no chão de sua casa, diante de uma mesa de centro, que acomoda discos de David Bowie, The Clash, Gal Costa, bem ao lado da vitrola.

    "Quer tomar uma taça de vinho comigo?" –e oferece um rótulo orgânico, fresquinho. "É bem estranho. No nariz, tem repolho e pum" –e ri. "Depois ele muda para maçã e daqui meia hora fica uma delícia, mas não temos todo esse tempo."

    A cozinheira, dona do restaurante Arturito, em São Paulo, e musa impiedosa do "MasterChef", recebeu a Folha para falar do lançamento de seu primeiro livro, "Todas as Sextas".

    "Para que escrever mais um livro de receitas?", perguntou-se à exaustão. "Não tenho um estilo de cozinha inovador nem receitas nem procedimentos originais para revelar."

    Eis que essa mulher, que sempre cozinha, seja lá para quem for, para "a mesma pessoa, que é alguém que eu amo", e que pintou seu restaurante com as próprias mãos para lhe dar ares mais humanos, viu em seus pratos, criados para os almoços das sextas-feiras, a coluna vertebral de seu livro.

    Foi a partir dessas receitas, que fizeram Paola se "reencontrar como cozinheira", que ela costurou a história da "construção de uma menina insegura, que atravessou várias situações na vida e acabou, de alguma forma, numa mulher bastante segura".

    O livro trata-se, pois, de uma biografia que conta ao leitor como diabos essa menina solitária, de família dura na Argentina, essa adolescente que se encrencou na escola, que pagou para trabalhar, nos primórdios, que teve uma vida "turbulenta e meio traumática", hoje é essa chef que encanta com uma cozinha em estado bruto, pura, na qual ideia vem antes de técnica, na qual o prato é que fala, por si só –e não o cozinheiro. "Entendo a cozinha como parte fundamental da vida e ela não pode ser só conceitual, expressão de arte, se ela não representa nem respeita o entorno."

    Nasce, então, uma narrativa literária, íntima e intensa –"acho que estou mostrando até a calcinha", ri– na qual as receitas são mais uma forma de explicar os porquês de sua cozinha do que um convite para colar a barriga no fogão, de fato –"são receitas complexas, de restaurante".

    "Talvez você não vá fazer a galinha-d'angola braseada, mas a leitura da receita pode fazer você aprender alguma coisa sobre como fazer um frango de panela."

    CHEIROS

    Paola Carosella, 43, carrega os cheiros da infância. "O molho de tomate fervendo na panela de ágata"; "as sementes de erva-doce"; "o alecrim colhido na horta para o coelho assado"; "o perfume das camélias, de parmesão maturado, de uva fermentando".

    E agora, neste momento, que cheiro sente? "Eu gosto de cheiros naturais, por isso não uso perfume. Detesto."

    Esse, diz ela, é um detalhe muito importante na cozinha –"você não pode esquecer. Cheiro é um sinal muito forte."

    E qual é o seu desafio na cozinha? "Ter vontade de cozinhar todos os dias. A cozinha de um restaurante não pode perder o tesão." No livro, você diz que sente paz na cozinha. Como assim, paz, num ambiente tão frenético? "Carreguei por muitos anos os dramas dos meus pais [seu pai se suicidou no viveiro do avô, entre "samambaias e bromélias", a mãe morreu afogada, na piscina]. Quando entrei na cozinha, não tinha a dor deles. Eu estava comigo. A cozinha te dá isso, uma espécie de meditação."

    Para Paola é "vital saber de onde os ingredientes vêm", trabalhar em um ambiente que tenha uma janela "por onde entre ar fresco" e no qual os cozinheiros "estejam felizes". E ela opera em absoluto silêncio e em "dança sincronizada". Você é muito rígida? "Não é rigidez, é respeito. Se você está em trabalho de parto, seu obstetra não está brincando de Pokémon Go. O respeito, a hierarquia e a autoridade se confundem muito aqui."

    Pois em seu balé, no qual cada receita é pensada levando em conta os talentos e limitações de cada profissional e de como elas exigirão seus movimentos, só se cozinha. "Você precisa fazer só isso. São muitas coisas ao mesmo tempo, mas todas estão conectadas."

    Paola gosta, especialmente, disso em seu restaurante –e suas etapas de produção, do mise en place à sobremesa do último cliente. "A ansiedade do serviço é como um monstro tentando te devorar mas você vai domando a fera, é um prazer"–suspira. "Gosto disso, a calma e a força. A calma, a força. Você não precisa ser agressivo mas você tem de ser firme."

    Um pouco como foi na vida de Paola, que teve como espelho "mulheres sofridas" –a mãe que trabalhava e estudava e raramente chegava para o jantar, a avó que acomodava raviólis recheados sobre a toalha de linho branco.

    "Eu gosto da perfeição" –e ela mesma se interrompe. "Não, eu não gosto da perfeição, eu gosto de procurar fazer o melhor possível." E as dores? "Todo mundo tem dores e cheiros ruins que gostaria de esconder." E que dores são essas que "nunca vão parar de doer", como você escreve no livro? "Perdi meus pais de forma muito dramática. Às vezes, eu preciso me disciplinar para perder o medo iminente. Vivo com a sensação de que algo horroroso vai acontecer."

    Pois, ainda assim, ligada nos 220, como ela mesma diz, anda enchendo a vida de planos. Quer abrir uma padaria (e já tem o ponto esperando, na mesma rua do Arturito; "é mais fácil ser mais do que fazer pão de fermentação natural"), viajar de Toyota 1980 pelo Brasil com seu namorado, voltar a ser aprendiz ("quero alguém que me dê a mão e me ensine o que eu não conheço amorosamente, como se fosse uma mãe, uma avó") e escrever mais um livro (sobre sua relação com agricultores familiares de Paralheiros).

    COELHO COM MOSTARDA

    "Todas as Sextas" é dedicado à sua filha, Francesca, de cinco anos. A "Fran", aliás, já "pega a faca, corta, pega os ovos pela manhã". Pega os ovos pela manhã? "Temos duas galinhas no quintal, a Chiquinha e a Julieta." E seriam os seus desenhos que Paola usaria para decorar a mesa que aprontaria para sua mãe, hoje.

    Se você pudesse escolher cozinhar para alguém, para quem seria? "É meio clichê, mas eu cozinharia para a minha mãe e sentaria com ela para conversar" –engasga e trava a fala. Silencia, respira. "Eu faria as coisas que eu mais gostava que ela fazia para mim, em homenagem a ela, como uma forma de demonstrar que aprendi. Coelho com creme de leite e mostarda, milanesa de berinjela, gratin de couve-flor e uma torta de nozes incrível de sobremesa" – e cai uma lágrima, ou duas.

    Todas as Sextas
    Paola Carosella
    l
    Comprar

    As fotos, irônicas às vezes (uma vaca viva ao lado da receita de caldo de carne "que é bom preparar uma vez na vida"), são de seu namorado, o inglês Jason Lowe, por quem está "cada dia mais apaixonada" e com quem tem "brigas muito inteligentes [risos]". E por que "casamento não é para mim?." "Gosto da liberdade de duas pessoas que todo dia se escolhem."

    Depois de ter passado vergonha por ser muito alta e andar encurvada, esconder os pés para não mostrar a joanete e conviver com pele e cabelo engordurados, quem é a Paola que você gosta de ser, hoje? "A resposta é meio estranha, mas eu gosto de ser quem eu sou. E aí você vai me perguntar 'quem você é?' [risos]. Eu estou feliz porque eu não quero ser outra pessoa. Não acho que tenha outra pessoa que eu possa ser."

    TODAS AS SEXTAS
    AUTORA Paola Carosella
    EDITORA Melhoramentos
    QUANTO R$ 139 (352 págs.)

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024