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    Neto de Che Guevara narra angústia e tédio da vida de servidor em Cuba

    SYLVIA COLOMBO
    DE SÃO PAULO

    22/10/2016 02h26

    Quando o filme "Che", de Steven Soderbergh, estreou no México, em 2008, Canek Guevara, neto do líder revolucionário, foi assisti-lo com um amigo. Na fila, uma menina se aproximou e disse: "Você é bem parecido com o Benicio del Toro [ator que interpreta Che no filme]". Canek permaneceu mudo e sério.

    Ser neto do ícone político mais amado e mais odiado do continente não foi algo fácil para o músico, escritor e designer. As dificuldades dele em vida começam a ser mais conhecidas só agora, após sua morte prematura no ano passado, aos 40, devido a complicações de uma cirurgia cardíaca.

    Seus escritos são marcados pela dificuldade de conviver com essa herança e por uma visão crítica da Cuba onde nasceu e passou parte da adolescência, já no período pós-Revolução Socialista (1959).

    Divulgação
    03.10.2008 Canek Sanchez Guevara Internazionale a Ferrara 2008 Foto :di Federica Poggi per Internazionale/Internaz ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Canek Sanchez Guevara no festival da 'Internazionale', na Itália

    No Brasil, chega às livrarias a obra póstuma "33 Revoluções e Cinco Contos". No livro, de forte tom autobiográfico, um cubano comum que trabalha numa repartição burocrática vê seus dias repetirem-se tal qual um disco riscado –o título faz referência ao número de rotações de um LP.

    O calor abafado, a sensação de vigilância constante, as dificuldades para fazer compras, as tentativas desesperadas de fuga de alguns compatriotas pelo mar –cenas que ele registra com sua máquina fotográfica– compõem o quadro que pinta de Havana.

    "Seu livro retrata a angústia dos homens que buscam a liberdade e, no caminho, acabam numa rua sem saída. É um romance que reflete a frustração e a hipocrisia em que se transformou a Revolução. É a denúncia do discurso dessa revolução, repetido à exaustão e que se choca com o real cotidiano dos cubanos", afirma à Folha o mexicano Alberto Sánchez, pai do autor.

    Canek, cujo nome de inspiração maia significa "serpente negra", era o filho mais velho de Hildita, fruto do primeiro casamento de Che, com a peruana Hilda Gadea.

    Em Cuba, Hildita conheceu Alberto, então um militante comunista que havia se refugiado na ilha após sequestrar um avião em Monterrey como parte de uma operação para forçar a soltura de presos políticos pelo governo do México.

    "Eu admirava o Che, mas em nossa casa não reverenciávamos sua imagem. Tínhamos medo de que isso virasse um fardo para nossos filhos. Por isso, eles foram educados apenas com os nossos valores, os da liberdade e da verdade", conta Sánchez.

    Hildita também não gostava de se sentir o "apêndice de um mito", nas palavras do marido. Então, a família partiu para viver na Espanha e no México. Em 1986, Canek voltou a Cuba, e passou a não gostar do que via.

    A perseguição a artistas e opositores e a falta de liberdade foram provocando no adolescente uma claustrofobia. Passou a usar preto, deixou o cabelo crescer e criou a banda Metalizer.

    Não demorou para que o metaleiro caísse no radar do ditador Fidel Castro, e os shows da banda passaram a ser interrompidos pela polícia, que dispersava o público com bombas de gás lacrimogêneo.

    Canek ficou no país enquanto a mãe estava viva. Mas, em 1995, quando Hildita morreu de câncer, decidiu ir para a Cidade do México, onde descobriu-se artista e ensaísta.

    Além de música, fazia resenhas literárias e virou colunista do semanário "Proceso". Uma coletânea de seus escritos daquela época saiu recentemente na Espanha, com o nome "Diários sem Motocicleta", uma brincadeira com o título do filme do brasileiro Walter Salles baseado nos diários do avô.

    33 Revoluções E Cinco Contos
    Canek Sánchez Guevara
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    Essa fase do Che viajante, curioso e criativo era a que Canek mais admirava. Já a fase revolucionária e a transformação dele em mito o incomodavam. "A esquerda o reduziu a um guerrilheiro heroico, e a direita a um carniceiro da Revolução. Ambos os retratos são reducionistas", disse em uma entrevista, já no final da vida.

    33 REVOLUÇÕES E CINCO CONTOS
    AUTOR Canek Sánchez Guevara
    TRADUÇÃO Julián Fuks
    EDITORA Tusquets-Planeta
    QUANTO R$ 31,90 (128 págs.)

    Edição impressa

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