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    CRÍTICA

    Sob direção de Jô Soares, peça de Shakespeare ridiculariza a guerra

    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    23/10/2016 02h02

    É uma peça menos divulgada de Shakespeare, uma "comédia sinistra", na tradução e adaptação de Jô Soares e Maurício Guilherme. Está longe dos solilóquios que fazem o regalo dos bardólatras e espectadores em geral.

    Mas é uma peça de propósito moral bastante claro, modernamente cínico, acentuado pelo humor de Jô, um dos grandes comediantes brasileiros. Retrata a guerra de Troia de ambos os lados. E o resultado é uma condenação arrasadora do militarismo.

    De Nestor a Aquiles, não sobra muito dos guerreiros gregos, em especial. A maior exceção é o troiano Heitor, que mantém certa postura heroica até a morte, ápice do que resta de "sinistro" ou trágico na peça –que não é muito, na direção adotada.

    Nesta versão, trata-se de uma comédia, ponto, e há ótimas atuações burlescas. O destaque, representativo do humor e da crítica que a montagem opta por fazer, é o Térsito de Ataíde Arcoverde.

    É hilariante já por sua presença física, que no palco lembra Marty Feldman. Com trajetória extensa em comédias populares no Rio e em humorísticos de Chico Anysio, pode ser visto como uma homenagem de Jô a Chico.

    Térsito é o servo de Aquiles que opera o "takedown", a afronta verbal sem tréguas ao grande herói grego –uma passagem que leva a plateia a aplaudir em cena aberta os talentos de Shakespeare, dos adaptadores e do ator.

    Arcoverde não está sozinho. Marco Antônio Pâmio, como um Agamenon desrespeitado por seus comandados, confirma ser um dos atores shakespearianos hoje mais preparados e versáteis. Seu Agamenon tem um gesto repetitivo e cada vez mais engraçado, de ajustar a calça que o incomoda no traseiro.

    Mas por vezes o populismo soa excessivo. É gratuito, por exemplo, o troiano Enéas bradar "Meu nome é Enéas!". O público mal reage, até porque poucos ainda se lembram de Enéas Carneiro (1938-2007).

    Sobre Tróilo e Créssida, os enamorados troianos do título, eles resumem o questionamento moral da peça. Depois de juras de amor infinito, ela o trai com um grego, expondo a falsidade generalizada que move a guerra.

    Maria Fernanda Cândido faz uma Créssida de efeito, mas não por sua atuação. Projeta uma bela figura, mas seu papel não é dos mais aprofundados, entre as mulheres shakespearianas. E o texto se estende repetitivamente sem que a atriz consiga achar variações mínimas.

    Ainda mais inexpressivo é o papel de Helena, que troca o grego Menelau pelo troiano Páris e é a desculpa da guerra. Adriane Galisteu tenta sustentá-la com sofreguidão de movimentos, sem êxito.

    Os personagens centrais são masculinos –e nem todos os 15 atores se encontram em cena. Otávio Martins, por exemplo, não chega a desenvolver uma caracterização eficiente para Aquiles, o mais ridículo dos guerreiros gregos de Shakespeare e Jô. De maneira geral, são personagens que beiram a caricatura, o que exigiria do elenco talento cômico próprio, natural, que nem todos demonstram.

    Mas a exemplo de "Histeria", montagem anterior do diretor Jô, também esta dá sinais de que ainda vai crescer em integração, ritmo. O que não tem muito como mudar é o cenário, com degraus e muralha, de inspiração datada, e o figurino, que lembra esquetes de Monty Python.

    Chega a ter uma cena que remete a "O Sentido da Vida", de 1983, em que mulheres seminuas perseguem um condenado. É no final, numa aparente opção por sepultar o último sopro de tragédia.

    TRÓILO E CRÉSSIDA
    Quando: qua. a dom., às 20h30
    Onde: Teatro do Sesi, av. Paulista, 1.313, tel. (11) 3258-2000
    Quanto: grátis

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