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    Crítica

    Meio 'déjà-vu', antologia agrada fãs de Neil Gaiman

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    29/10/2016 02h08

    Coletâneas podem ser monstrinhos mal-ajambrados, cuja principal serventia é reunir textos que não são suficientemente ruins para ir parar no lixo nem bons para virar algo maior.

    Monstrinhos, de fato, não faltam em "Alerta de Risco", coletânea do britânico Neil Gaiman –mas são do tipo que salta na jugular do leitor de dentes arreganhados, puxa os pés dele na cama de madrugada e o fazem dar duas voltas na chave da porta.

    "O passado não está morto", proclama Gaiman ao apresentar os contos e poemas (sim, há três deles) que compõem o livro; há "um suprimento inexaurível de escuridão" no Universo.

    Ozier Muhammad/The New York Times
     Neil Gaiman, author of more than 20 books on nightmares, human folly and fairy tales both young and adult, in New York, June 2, 2014. Gaiman will read his novella "The Truth Is a Cave in the Black Mountains" with art and musical accompaniment at Carnegie Hall on June 27. (Ozier Muhammad/The New York Times) - XNYT76
    Neil Gaiman, que tem seu 'Alerta de Risco' lançado no Brasil

    Daí o título do livro –uma tradução inevitavelmente imprecisa do termo inglês "trigger warning", hoje usado para designar alertas de que determinada imagem, notícia ou obra literária (entre outras coisas) pode trazer conteúdos violentos, perturbadores, traumatizantes, "não recomendados para menores".

    Seria, portanto, uma coletânea de horror? Não exatamente, embora o lado sanguinolento da imaginação apareça em boa parte das histórias.

    Também há muito humor (frequentemente negro) nesses contos, assim como doses generosas de ficção científica e fantasia, gêneros vorazmente deglutidos por Gaiman em seus anos de formação. Se fosse necessário forçar a barra para achar um fio comum aos textos de "Alerta de Risco", este escriba apontaria a questão do tempo e da memória: como criaturas como nós lidam com o passado, real ou imaginário.

    Em registro cômico, temos o sujeito responsável por "desinventar" as grandes invenções do futuro (como carros voadores e viagens interestelares) em "E Vou Chorar, como Alexandre", ou a menina que explica, num formato de questionário policial, como sua irmã virou uma imperatriz E.T. (em "Laranja").

    No lado mais sério, encontramos o sujeito que, de repente, descobre que a namorada que inventou na época do ensino médio para impressionar os amigos passou a existir (é o mote de "Detalhes de Cassandra"); ou duas recriações seguidas do conto de fadas "A Bela Adormecida" em "Respeitando as Formalidades" e "A Bela e a Adormecida".

    O acerto de contas com o passado inclui ainda habilidosas homenagens do britânico aos contistas e às histórias que o influenciaram: é o caso de "O Homem que Esqueceu Ray Bradbury" (quase uma retrospectiva poética da obra do autor de "Fahrenheit 451") e "Caso de Morte e Mel", uma aventura de Sherlock Holmes que venceu o Prêmio Locus de melhor conto em 2012 (os contos que receberam a láurea nos dois anos anteriores também foram escritos por Gaiman e, veja, estão na antologia).

    O "gran finale" do livro, "Cão Negro", ajuda a matar as saudades de Shadow Moon, semideus e ex-presidiário que é o protagonista do romance "Deuses Americanos", best-seller de Gaiman.

    A narrativa se passa no interior da Inglaterra e usa elementos que os fãs já se acostumaram a esperar nos textos do escritor: recriação habilidosa de elementos históricos e folclóricos, personagens que raramente são quem parecem ser, assassinatos e, é claro, gatos –talvez a maior congregação de felinos já descrita pelo autor.

    Ao apresentar o conto na introdução do livro, Gaiman confidencia que Shadow ainda enfrentará mais uma aventura antes de voltar para os EUA –possível pista sobre uma sequência de "Deuses Americanos", da qual ele tem falado já faz alguns anos.

    Alerta De Risco
    Neil Gaiman
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    Será que essa sensação de "já li isso antes" compromete o livro, ou atesta a estagnação criativa do criador de "Sandman"?

    Talvez para quem só vê virtudes literárias na busca incessante por novidade; mas é difícil negar que as histórias de "Alerta de Risco" (ou ao menos a maioria delas) simplesmente funcionam. São como uma fresta para um mundo cujas maravilhas e horrores espelham os do nosso.

    Recomenda-se enfiar o livro numa gaveta à noite, só por via das dúvidas.

    ALERTA DE RISCO: CONTOS E PERTURBAÇÕES
    AUTOR Neil Gaiman;
    TRADUÇÃO Augusto Calil
    EDITORA Intrínseca
    QUANTO: R$ 44,90 (304 págs.)

    Edição impressa

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