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    Ato de Nuno Ramos por mortos do Carandiru foi teatro angustiante

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    04/11/2016 02h40

    Nuno Ramos queria uma ladainha, um mantra que irradiasse como uma antena os nomes dos 111 mortos no massacre do Carandiru. Seria a repetição exaustiva, tediosa de uma lista cheia de Josés e Joãos da Silva e dos Santos.

    Na virada para o último Dia de Finados, o artista orquestrou uma performance-vigília de 24 horas na varanda do alto de um prédio no centro da cidade. Escalou artistas e ativistas para ler os nomes dos detentos que perderam a vida na chacina dentro do presídio.

    Zé Celso, Ferréz, Paulo Miklos, Bárbara Paz, Marina Person, Rita Cadillac, entre outros, passaram por lá. Diante de uma câmera, que transmitia o ato ao vivo pela internet, leram durante uma hora cada um dos nomes grafados em maiúsculas pretas sobre papel sulfite. Não havia plateia no apartamento que abrigou a ação, só técnicos tentando manter o sinal de pé e Ramos, que às vezes dirigia a leitura.

    Quase um quarto de século depois do massacre, essa performance de longa duração marcou o retorno do artista ao episódio. Um mês depois da chacina, em 1992, Ramos criou uma instalação em que cada morto era simbolizado por uma pedra coberta de breu e asfalto. Nas paredes, caixas de vidro exibiam páginas da Bíblia picotadas e chamuscadas.

    Ramos reagia então num plano mais plástico. Sua obra era a tradução formal –e pesada– das imagens de cadáveres amontoados e ensanguentados que chocaram o país. Aqueles corpos nus, de rostos já indecifráveis, estamparam jornais costurados do peito à barriga. Eram peças de carne anônima com números escritos a canetão nas coxas.

    "A coisa insepulta deles ainda é o nome", diz Ramos. "Arte é presença, e um nome é um mínimo de presença. São as palavras tentando se materializar de todas as formas."

    Terceiro a ler os nomes, Ramos parece ter traduzido na fala a estética de dissolução e derretimento que marca sua obra, esculturas instáveis feitas de vaselina, breu, areia.

    Ele esticava as sílabas, quase soletrando os nomes, transformando cada morte numa grande espera. Depois, embaralhava a ordem, fazendo o último nome parecer o primeiro, emendando todos numa massa sonora amorfa.

    Enquanto Ramos subtraía a identidade desses 111, o escritor Ferréz foi na contramão, inventando histórias para cada um deles. Falou daquele que "esperou tanto para que um maloqueiro lesse seu nome", do que "gostava de brincar de carrinho de rolimã", do que "estava lendo a Bíblia, estava virando gente decente".

    Num momento catártico, gritou só os primeiros nomes das vítimas, como se esgoelasse para chamar a atenção. Deu para contar 16 José, quatro Luiz, três João, dois Antônio.

    "Tem muitos da Silva, como o Lula, tem muitos santos também, muitos Jorge, Luiz", comentou Zé Celso. "Não são só 111 pessoas, são todos nós. São vítimas dos mocinhos, dos que dividem o mundo entre mocinhos e bandidos."

    Nas redes sociais, comentários ao lado da tela mostrando o ato ilustravam essa mesma divisão. Atacavam o artista e seus convidados por transformar em heróis aqueles que não passavam de bandidos. Houve quem dissesse que "ladrão bom é ladrão morto".

    "Não quis tornar heroico o que não é heroico, nem diminuir a dor de quem sofreu", disse Ramos, no fim do ato. "O fato é que houve uma chacina que continua se disfarçando nos escaninhos da Justiça."

    Ramos também lembrou o histórico extenso de artistas que celebrizaram figuras do crime, como Hélio Oiticica e o traficante Cara de Cavalo, Rogério Sganzerla e seu Bandido da Luz Vermelha, Antonio Manuel e o Esquadrão da Morte.

    Mas sua performance tentou passar ao largo disso, longe de relembrar o que fizeram esses homens para estar no Carandiru. Ramos se centra na forma, primeiro na sublimação dos cadáveres em pedras e agora na pronúncia obsessiva, raivosa ou melancólica dos 111 nomes, operando ali mais como rostos ressuscitados.

    Na espera e na repetição, pilares das performances de resistência, o artista criou um teatro angustiante, às vezes de humor involuntário, alternando a solenidade clínica ou clerical de leitores como Carlos Augusto Calil ou Jean-Claude Bernardet e a histeria dramática das atrizes Bárbara Paz e Helena Ignez –enquanto a primeira urrava os nomes até perder a voz, a segunda sussurrava, como um xamã em transe.

    Sua vigília foi irregular e pedregosa, entre vida e morte.

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