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    Festival Mix Brasil começa na quarta com o polêmico filme 'O Ornitólogo'

    GUILHERME GENESTRETI
    DE SÃO PAULO

    07/11/2016 02h32

    O diretor português João Pedro Rodrigues afirma que se interessa pelo "grande erotismo" da arte religiosa. O repertório é vasto: vai do êxtase da santa Teresa de Bernini, que reverbera feito um orgasmo, à simbologia gay das flechas no corpo de são Sebastião, como nota o cineasta.

    Em "O Ornitólogo", novo longa de Rodrigues, o cineasta lisboeta mistura o sexual e o sagrado ao narrar a viagem espiritual de Fernando (Paul Hamy) por uma floresta surrealista do norte de Portugal.

    Desde o prêmio de melhor diretor no Festival de Locarno, em agosto, tornou-se um dos mais comentados do ano pela crítica europeia. E nesta quarta (9), abre a 24ª edição do Mix Brasil, evento de cultura LGBT em São Paulo.

    Na trama, o diretor português borda uma alegoria libertina e blasfema da história de santo Antônio de Pádua.

    "Na pintura religiosa, os santos eram como super-heróis da época, com superpoderes e corpos idealizados, erotizados conforme os desejos de seus pintores", diz o diretor. "Aprendi a contar histórias olhando para pinturas."

    Em seu filme, a história começa com uma longa sequência contemplativa e realista: Fernando, o ornitólogo do título, navega sozinho para observar pássaros. Seu único contato com o resto do mundo se dá por mensagens no celular: "Não se esqueça de tomar os remédios", pede alguém, do outro lado da linha.

    A obra ganha contornos surreais depois de transcorridos os primeiros 20 minutos: uma corredeira derruba o caiaque do personagem.

    Resgatado por peregrinas chinesas, que se perderam no caminho de Santiago de Compostela, Fernando é amarrado tal objeto de algum fetiche. Em sua jornada floresta adentro, ele também encontra amazonas de peito nu que falam latim, cruza uma mata repleta de animais empalhados e topa com rapazes vestidos com trajes dos caretos, figuras do carnaval lusitano.

    Jesus, que no relato cristão apareceu na forma de um menino em uma das orações de santo Antônio, ganha no filme o corpo de um jovem rústico e galego que pastoreia ovelhas e com quem o protagonista se engolfa nas areias.

    "Criei uma hagiografia pessoal, uma forma de encontrar a minha própria mitologia na história desse santo", afirma o diretor à Folha. "Mais do que a religião, o que me interessa é o sagrado."

    A forma como trata do sagrado chega a remeter à obra de outro diretor, também afeito a explorar o corpo no cinema: o italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975). "Acho que temos uma visão um pouco iconoclasta das mitologias."

    Esse sagrado também se manifesta na reverência à natureza de contornos sobrenaturais retratada no longa, segundo o diretor, que já quis ser ornitólogo. "Para mim sempre foi misterioso o olhar dos animais", diz. Ele embute esse mistério em cenas do filme: quando as aves miram o protagonista, é o cineasta quem assume o corpo dele.

    "Senti que eu precisava passar para o outro lado. Era uma forma de fazer com que a experiência de fazer cinema continuasse causando em mim certo desconforto", diz.

    Dono de uma filmografia de cinco longas, Rodrigues se firmou no panorama da produção portuguesa contemporânea com obras carregadas de sexualidade. "O Ornitólogo" é talvez a sua produção mais acessível. O diretor discorda: "Não vai agradar a toda gente. Sei pelas reações que ele divide opiniões. É audaz abrir um festival com ele."

    RECORDE

    Além de abrir a edição do Mix Brasil, João Pedro Rodrigues também ganha uma minirretrospectiva dentro da programação, com a exibição do curta "Parabéns!"(1997) e de seu primeiro longa, "O Fantasma" (2000), saga física de um lixeiro que roda a cidade para aplacar o desejo.

    Ao todo, a mostra LGBT exibe 114 filmes de 26 países, entre longas e curtas-metragens. Neste ano, houve recorde de inscrições, segundo as contas de João Federici, diretor artístico do festival: 470 ante os 317 do ano passado.

    Estão entre eles "É Apenas o Fim do Mundo", nova obra do canadense Xavier Dolan, e a estreia de seu conterrâneo Stephen Dunn, "O Monstro no Armário", sobre a descoberta sexual de um adolescente.

    "O que chama a atenção nesta safra é a forma como os realizadores usam o corpo como um instrumento político, não importando em qual letra da sigla LGBTQ eles estejam", diz Federici.

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    24º FESTIVAL MIX BRASIL
    QUANDO 9/11 a 20/11
    ONDE vários locais
    QUANTO grátis a R$ 26
    PROGRAMAÇÃO mixbrasil.org.br

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    O ORNITÓLOGO
    QUANDO qua. (9), 20h30, no Auditório Ibirapuera (só para convidados); sex. (11), 19h, no CineSesc; ter. (15), 22h, no Itaú Augusta 3

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