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    Pintor e ceramista Francisco Brennand brinca de ficção e realidade em diários

    MARIA LUÍSA BARSANELLI
    ENVIADA ESPECIAL AO RECIFE

    03/12/2016 02h00

    As cerâmicas e os quadros de Francisco Brennand estão impregnados de palavras. Seja nas citações, de Heráclito a Jorge Luis Borges, que adornam o parque de esculturas que o artista mantém nos arredores do Recife, seja no seu apreço em dar nome às obras.

    "Eu jamais separei o meu trabalho de pintor do meu trabalho literário", diz à Folha em seu ateliê na Oficina Brennand, espaço de mata fechada à margem do Capibaribe.

    "Inclusive as pessoas podem pensar que eu estou brincando quando digo que pinto ou faço uma escultura apenas para batizá-la", segue o artista, hoje com 89 anos, imponente, alto, a barba branca e comprida, só o bigode raspado na altura do nariz.

    Leo Caldas/Valor
    21/11/2016 EDITORIA: cULTURA PERSONAGEM : : Francisco Brennand, que completa 90 anos e lança um livro. PAUTA: Francisco Brennad, artista plastico pernambucano que da nome ao conjunto arquitetonico (Oficina Brennand) REPORTER: Robinson Borges LOCAL: Recife Foto : Leo Caldas / Valor ***FOTO DE USO EXCLUSIVO FOLHAPRESS***Restrição:***FOTO DE USO EXCLUSIVO FOLHAPRESS*** Francisco Brennand, que completa 90 anos e lança um livro.
    Francisco Brennand ao lado de suas esculturas na Oficina Brennand, no Recife

    Seus escritos, mais precisamente os diários que iniciou aos 22 anos, serão lançados neste sábado (3), uma caixa com quatro volumes de cadernos feitos entre 1949 e 2013.

    Foram organizado por Marianna Brennand Fortes, sobrinha-neta do artista, que teve acesso aos textos em 2002, quando decidiu fazer um documentário sobre o tio-avô, lançado 11 anos mais tarde.

    Desde então, ela cataloga e organiza a obra de Brennand, trabalha para transformar a oficina em um instituto e criou uma editora, a Inquietude, para lançar projetos pessoais como este. "Achei que seria importante ter liberdade. E é uma publicação tão íntima", conta Marianna.

    O artista deixa indícios, no próprio texto, de que intencionava um dia publicá-lo: fala de preocupações literárias, cita nomes das artes que também editaram seus escritos. "Desde que eu comecei, já sabia que era literatura. Não escrevi inocentemente", conta.

    OUTRO NOME

    Os primeiros três volumes, escritos ao longo de 50 anos, foram batizados de "O Nome do Livro", resposta irônica à pergunta (qual o nome do livro?) que muitos lhe faziam.

    Começam com suas viagens, quando embarca com a primeira mulher, Deborah, para estudar pintura em Paris. Fala de suas venerações literárias, suas aspirações e convivências artísticas, como o francês Balthus, uma das suas maiores influências.

    Discorre ainda sobre as modelos e os amores –casou-se quatro vezes e teve cinco filhos, o mais novo hoje com 23.

    Passa por seu retorno ao Recife, quando retomou a antiga olaria do pai, espaço no bairro da Várzea então em ruínas que o artista reconstrói desde 1971, transformando-o na sua Oficina Brennand, hoje ponto turístico da cidade. Naqueles fornos, pôde experimentar com a cerâmica e criar o mundo primitivo e mitológico que explora em suas esculturas, obras pelas quais ficou mais conhecido.

    Reprodução
    Autorretrato aos 70 Anos', que ilustra o volume 3 dos diáriosLegenda:Diários de Francisco Brennand - volume 3 Autorretrato aos 70 anos, 1997. ***EXCLUSIVO ILUSTRADA*** ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***Restrição:***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM*** ***EXCLUSIVO ILUSTRADA***
    'Autorretrato aos 70 Anos', que ilustra o volume 3 de 'Diário de Francisco Brennand'

    Mas nem sempre há uma ordem cronológica, tampouco está tudo lá. Brennand queimou uma série de diários, datados de 1963 a 1974. "Achei que eles estivessem fora do contexto. Literariamente eram dispensáveis."

    Envereda aqui e ali pela ficção, criando um alter ego, Nonato, cujo nome significa "aquele que não nasceu". Faz isso em especial no quarto tomo, "O Nome do Outro", que começou em 2007, oito anos após terminar o terceiro.

    Cria personagens, muda o nome de pessoas, descreve situações por vezes inverossímeis e comenta, com certa licença literária, o noticiário.

    "Cessando isso, o que eu escrevi antes fica em suspensão. O que é real, o que é irreal. Eu abordo, sem cerimônia, os mais diferentes assuntos."

    De fato, Brennand fala de tudo um pouco. Trafega entre um tema e outro fazendo associações das mais diversas. Em determinado momento, explica: "Na minha fala, uso muitas digressões, passeio por todos os lados. E eu confundo um pouco o meu interlocutor."

    Nas cerca de três horas em que conversou com a reportagem, discorreu sobre a ascensão de ideologias extremistas na Europa ("essa guerra planetária que está acontecendo e que ninguém ainda se deu conta"), a eleição de Donald Trump nos EUA ("não é uma figura solitária, foi puxado por algum cordel"), a polêmica saída do ex-ministro da Cultura Marcelo Calero ("não é permitido a um governante ser tão inocente assim").

    E diz que a pintura, à qual tem se dedicado mais ultimamente, perdeu espaço no mercado. "Não temos mais colecionadores", afirma ele, enquanto tira da mesa a xícara de café usada horas antes por um amigo que fora visitá-lo e desculpar-se por não ter ido à mostra "As Névoas de Caspar", inaugurada pelo artista em novembro no Espaço Brennand, em Boa Viagem.

    "Em missa de sétimo dia, casamento, se você sente a falta de alguém, pode considerar uma falta de educação, mas não numa exposição."

    Na mostra, ele homenageia as pinturas românticas do alemão Caspar David Friedrich. "Não é nada brasileiro. Gosto de remar contra a maré. A arte não é um processo de repetição que a mídia aprova ou não aprova. Arte é aquilo que você deseja fazer."

    À MÃO

    Da velhice, fora a mão já sem a firmeza de antes, não reclama. Diz não ouvir mais do ouvido esquerdo, "e é uma vantagem, viu? A gente não escuta coisas desagradáveis".

    Vai de domingo a domingo à oficina, que fica a poucos minutos de sua casa. No ano que vem, o espaço completa cem anos (a contar da abertura da olaria), e Brennand prepara um memorial em homenagem ao pai.

    Leo Caldas/Valor
    21/11/2016 EDITORIA: cULTURA PERSONAGEM : : Francisco Brennand, que completa 90 anos e lança um livro. PAUTA: Francisco Brennad, artista plastico pernambucano que da nome ao conjunto arquitetonico (Oficina Brennand) REPORTER: Robinson Borges LOCAL: Recife Foto : Leo Caldas / Valor ***FOTO DE USO EXCLUSIVO FOLHAPRESS***Restrição:***FOTO DE USO EXCLUSIVO FOLHAPRESS*** Francisco Brennand, que completa 90 anos e lança um livro.
    Parque de esculturas da Oficina Brennand, no bairro da Várzea, no Recife

    Segue escrevendo (à mão, "para não perder o hábito"). Trabalha numa história rocambolesca de um urso que queria ser homem, sai do Alasca, vem parar no Brasil e cria uma agência de notícias em que faz comentários insolentes sobre o mundo político.

    Além de um novo diário, que começou em fevereiro passado e pretende terminar no mesmo mês do ano seguinte. Inspirou-se nos "Aforismos" do alemão Georg Lichtenberg. "Eu disse: pois bem, vai ser 'Diário Mínimo'. Eu tenho, por obrigação, que escrever o mínimo possível, porque eu sou prolixo."

    A sobrinha-neta questiona se o nome é inspirado no livro homônimo de Umberto Eco, e Brennand se surpreende. Não havia reparado na duplicidade. "Então eu vou ter que modificar, vou ter que modificar. E eu pensava que tinha sido altamente original. Você veja, ninguém pensa sozinho."

    A jornalista MARIA LUÍSA BARSANELLI viajou a convite da editora Inquietude.

    DIÁRIO DE FRANCISCO BRENNAND
    AUTOR Francisco Brennand
    EDITORA Inquietude
    QUANTO R$ 100 (1.992 págs., caixa com quatro volumes)

    Edição impressa

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