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    Ferreira Gullar fez incursão radical na política na década de 1960

    PAULO WERNECK
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    04/12/2016 12h25

    O papel de Ferreira Gullar, morto neste domingo aos 86 anos no Rio de Janeiro, como teórico da arte de vanguarda estava consolidado quando, no início dos anos 1960, ele abandonou o grupo dos neoconcretos para fazer uma incursão igualmente radical na política. Da dissolução da sintaxe e da experimentação na página o poeta migraria para as formas da poesia popular, como a literatura de cordel, as criações coletivas e o teatro de rua. Sobre essa guinada, o seu ex-amigo Nelson Rodrigues, que o chamava de "ex-grande-poeta", escreveria em 1972: "O Ferreira Gullar foi cercado, envolvido, triturado pelos idiotas".

    A porta de entrada foi um convite do governo Jânio Quadros para dirigir a Fundação Cultural de Brasília, em 1961. A experiência o mergulhou no caldo de cultura popular que fermentava na esquerda brasileira pré-64. Gullar não demorou a se engajar nos Centros Populares de Cultura, que promoviam agitação cultural e política, tornando-se o presidente do CPC da União Nacional dos Estudantes em 1962.

    No ano seguinte, publicou o ensaio "Cultura Posta em Questão", libelo em favor do engajamento político de artistas e da conscientização do povo por meio da arte. A essa altura, Gullar já havia abandonado qualquer traço de vanguardismo ou hermetismo em sua poesia e buscava uma aproximação com a linguagem popular em trabalhos assinados a várias mãos, como "João Boa Morte, Cabra Marcado P'ra Morrer" e "Quem Matou Aparecida", ambos de 1962, que discutem de forma didática temas da pauta da esquerda, como a reforma agrária. Seu principal parceiro era o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho.

    A filiação ao Partido Comunista parecia tão inevitável quanto o golpe militar que se anunciava, e foi em 1o de abril de 1964, o mesmo dia em que as tropas do Exército tomaram o Forte de Copacabana, inaugurando os 21 anos da ditadura, que o poeta assinou sua ficha de membro do PCB.

    Naquele mesmo ano ele participou da fundação do Teatro Opinião, um dos mais importantes centros de resistência cultural até que o Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, impossibilitasse qualquer forma de oposição.

    Horas depois da decretação do AI-5, Gullar foi preso, ao lado do escritor Antonio Callado, dos músicos Gilberto Gil e Caetano Veloso e do jornalista Paulo Francis. Logo foram libertados, mas sem condições de trabalhar sob o Ato Institucional, que por cassar liberdades constitucionais como o habeas corpus se tornou conhecido como o "golpe dentro do golpe".

    Gullar caiu na clandestinidade em 1970, percebendo que mais cedo ou mais tarde iria parar na cadeia —era o início do período mais repressivo do regime militar. Em depoimento para a TV, ele observaria anos mais tarde que os militares não diferenciavam os guerrilheiros urbanos dos militantes do PCB como ele— o "Partidão" não fizera a opção pela luta armada, mas pagava o preço mesmo assim, com prisões, mortes, exílio e tortura.

    Moscou foi o primeiro destino de Ferreira Gullar, em 1971. No mesmo ano, ele seguiu para Santiago do Chile, mergulhando novamente na efervescência da esquerda num ambiente pré-golpe militar. Com o golpe que pôs o general Augusto Pinochet no poder, em 1973, Gullar fugiu para Buenos Aires, onde um novo golpe o aguardaria, em 1976. As intensas recordações daquele tempo estão reunidas em "Rabo de Foguete" (Revan), livro em que Gullar se revelou um memorialista de mão cheia.

    PAULO WERNECK é editor e ex-curador da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty)

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