Ferreira Gullar, morto neste domingo (4) aos 86 anos no Rio de Janeiro, teve uma obra em campos diversos como a crítica literária ou, mais recentemente, as artes plásticas. O artista, no entanto, é mais conhecido por sua poesia.
Foram 17 livros com versos publicados ao longo de mais de 65 anos. Entre os mais famosos estão "Poema Sujo", de 1976, e "Muitas Vozes", de 1999.
Leia abaixo alguns de seus poemas mais famosos.
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TRADUZIR-SE
(do livro "Na Vertigem do Dia", 1980, ed. José Olympio)
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
*
NASCE O POETA (trecho)
(do livro "Muitas Vozes", 1999, ed. José Olympio)
No princípio
era o verso
alheio
Disperso
em meio
às vozes
e às coisas
o poeta dorme
sem se saber
ignora o poema
que não tem nada a dizer
*
APRENDIZADO
(Do livro "Barulhos", 1987, ed. José Olympio)
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
*
MEU POVO, MEU POEMA
(do livro "Dentro da Noite Veloz", 1975, ed. José Olympio)
Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova
No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar
No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro
Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil
Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta
Reprodução | ||
'mar azul', poema do livro "Poemas Concretos/Neoconcretos", de Ferreira Gullar |
CANTADA
(idem)
Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça d'água
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobras
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira da República Dominicana
Olha,
você é tão bonita que o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana