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    Crítica

    Peça 'Jacqueline' tem encenação ousada, mas texto soa reiterativo

    VALMIR SANTOS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    09/12/2016 02h09

    A partitura, grosso modo, está para a música como a dramaturgia para o teatro. Em "Jacqueline", as partes dão conta do todo, como numa composição. Cabe ao quarteto de atores executar as notações corporais e vocais.

    A trama em si é lateral. Importa mais os procedimentos para contá-la. Uma experiência narrativa capaz de radicar teatralidade sem deixar de envolver o público em águas ficcionais de tonalidades trágicas e românticas.

    A peça mantém o conteúdo biográfico em baixo-relevo e valoriza o fluxo de pensamento da violoncelista inglesa Jacqueline du Pré (1945-1987) e daqueles que amou.

    As ações e o ritmo no espaço cênico são pautados pelo "Concerto para Violoncelo e Orquestra", do inglês Edward Elgar (1857-1934), cuja gravação a solista tornou antológica aos 20 anos. Sua genialidade foi tolhida pela esclerose múltipla que paralisou os movimentos do corpo gradativamente, dos 28 aos 42 anos.

    Dados assim circundam a obra escrita e dirigida por Rafael Gomes. Há dois ruídos na encenação. Um deslize no instrumental caro à arte da interpretação, a voz, e algumas platitudes do texto.

    Natália Lage vive o papel-título da artista cultuada por combinar carisma, excelência técnica, sentimento instintivo e presença do erotismo nas performances. A atriz transmite a dimensão do inefável, talvez a mais difícil de concretizar, e desequilibra ao não modular a voz dessa mulher de tantos matizes.

    VIBRAÇÃO

    Por contraste, Arieta Corrêa vibra como Hilary na conexão com o público, a irmã antípoda dois anos mais velha. A musicalidade vocal condiz com a personalidade de quem abdicou da profissão de flautista, casou com um maestro, criou quatro filhos e foi morar no campo. As naturezas de ambas pesam pela mãe professora de piano com mão de ferro.

    Du Pré recolhe-se à casa de Hilary por semanas. Está em crise por causa da agenda de concertos e do casamento com o pianista e maestro Daniel Barenboim (Daniel Costa), garoto-prodígio como a violoncelista. Ela se afeiçoa do cunhado que a escuta (Fabricio Licursi) e a enreda por jogos de palavra, ideia e sedução. As atuações de Licursi e Corrêa têm o efeito de deslocar a atenção sobre o notório casal da música erudita. Du Pré e Baremboim são percebidos a partir dos outros.

    O espectador acostumado à disputa de marido por irmãs rodriguianas se depara com a compreensão em vez da rivalidade histérica. Dobras de sentidos são refletidas no desenho de luz e na base cenográfica. Um tablado de madeira sugere a superfície de um piano e aos poucos vira parede, janela, lápide e demais vazios imaginários.

    Apesar da inspirada veneração a Tchékhov –a atitude contemplativa e a curiosidade pelos mistérios da ciência e da alma–, o texto de Gomes soa reiterativo nas passagens sobre a capacidade de cada um superar desafios como Du Pré o fez via arte. Isso mina um tanto do que arquiteta.

    *

    JACQUELINE
    QUANDO sex. e sáb., às 21h; dom., às 18h; até 18/12 e de 6 a 29/1
    ONDE Sesc Consolação, r. Doutor Vila Nova, 245, tel. (11) 3234-3000
    QUANTO de R$ 12 a R$ 40
    CLASSIFICAÇÃO: 14 anos

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