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    Autor de mais de 300 cartazes de pornochanchada, Benício faz 80 anos

    LUAN FLAVIO FREIRES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    09/12/2016 02h30

    A mão direita treme e não mais obedece completamente ao dono, mas José Luiz Benício encontrou uma forma de disfarçar o problema quando cumprimenta alguém. Além do sorriso fácil e do olhar atento, ele usa a esquerda como uma espécie de cama para apoiar o aperto de mão sempre que recebe alguma visita em seu apartamento no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro.

    Se uma das mãos ainda é firme e o ajuda a esconder parte dos efeitos do segundo acidente vascular cerebral que sofreu, em 2014, há algo que ela não pode fazer: repetir a firmeza do traço e a precisão do desenho que fizeram dele um dos maiores e mais conhecidos ilustradores brasileiros.

    "Parei tudo, não sei fazer nada com a esquerda", lamenta. A tristeza tem motivo: Benício, que completa 80 anos no dia 14, passou mais de seis décadas desenhando capas de livros e discos, cartazes de cinema, anúncios publicitários e o que mais lhe fosse requisitado.

    ODALISCAS

    O gaúcho de Rio Pardo chegou ao Rio de Janeiro aos 17 anos para visitar o irmão e acabou ficando. A ideia era estudar piano, mas terminou enveredando para o desenho, que aprendeu praticando sozinho desde os cinco anos.

    "Os guris preferiam os heróis, como o Capitão Marvel; eu gostava de desenhar odaliscas", lembra.

    Foram as mulheres que tornaram Benício um artista célebre. Primeiro, ilustrando as revistas femininas "Cinderela" e "Xodó" e, a partir dos anos 1960, as icônicas capas dos livros pulp de bolso de Lou Carrigan, pseudônimo do escritor Antonio Vera Ramírez, que traziam as histórias da voluptuosa espiã Brigitte Montfort –mulher tão bela quanto letal.

    "[A personagem foi] A que ficou mais tempo comigo e me tornou conhecido. Tenho uma natural tendência por ela", reconhece.

    Para criar a imagem da espiã, Benício se inspirou na socialite carioca Maria de Fátima Priolli e atribuiu à personagem –que era mestre dos disfarces e sabia lutar caratê, atirar e pilotar aviões– uma imagem fatal e independente.

    BELEZA NO PAPEL

    Com o sucesso, surgiram convites para ilustrar cartazes do cinema nacional na década seguinte, principalmente os da pornochanchada.

    "Às vezes tinha gente que se frustrava e reclamava que o filme não correspondia ao que era prometido no cartaz, que as mulheres não eram tão bonitas", recorda.

    Para fazer os pôsteres ele só recebia registros fotográficos das filmagens; o resto ficava a cargo da imaginação.

    Curiosamente, cinema nunca foi muito a sua praia. "Filmes são muito longos, perde-se quase um dia inteiro para vê-los."

    SONHOS

    Em mais de seis décadas de trabalho, Benício assinou cerca de 300 cartazes –entre eles dos filmes "A Super Fêmea", de 1973, e "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de 1976, obras que respectivamente ajudaram a fazer de Vera Fischer e Sônia Braga símbolos sexuais da época.

    As experiências fizeram com que ele se tornasse requisitado em outros mercados. Duas criações dessa fase circulam até hoje: os rótulos do rum Montilla e da catuaba Selvagem.

    "A concepção foi a mesma de um super-herói: o cara fortão, traduzindo a imagem que a bebida propõe: vigor", conta sobre a segunda marca.

    Os serviços dele ainda foram solicitados para campanhas políticas, entre elas as de Moreira Franco ao governo do Rio (em 1986), e as de Ulysses Guimarães e Fernando Collor à Presidência, em 1989. "Cometi esse pecado", se refere ao último.

    Até a paróquia São Francisco Xavier lhe solicitou a pintura de um painel. O tema escolhido para a obra, que está na igreja até hoje, foi o da transformação da água em vinho.

    QUERUBINS E PRESÉPIOS

    Motivos religiosos também são encontrados nas esculturas, feitas por ele em terracota, que estão expostas em seu apartamento: querubins, santos e presépios.

    Apesar do mesmo perfeccionismo encontrado nos desenhos estar presente nas peças, ele manteve a atividade quase em segredo desde que começou a praticá-la como hobby nos anos 1990. "Nunca quis muito envolvimento, não me interessava, teria de me dedicar só a isso."

    O alcance de sua obra não se restringiu ao Brasil. Em 2011, o músico alemão Morlockk Dilemma plagiou a capa que o artista fez para o disco "Amar para Viver ou Morrer de Amor", lançado por Erasmo Carlos em 1982.

    "Não dá para dizer que foi inspiração ou homenagem, simplesmente trocaram a cabeça do desenho". Depois de entrar em contato com o músico e a gravadora, a capa foi retirada de circulação.

    Benício ainda colaborou com revistas como "piauí" e "Playboy", desenhou a campanha de 2013 da cerveja Stella Artois de Londres, ilustrou produtos cosméticos da Granado e fez a capa do livro "Mônica(s)", no qual artistas como Milo Manara e Will Eisner repensaram a personagem de Maurício de Sousa.

    O segundo acidente vascular cerebral, em 2014 –seis anos depois do primeiro– interrompeu sua carreira repentinamente.

    "Muito a contragosto tive de parar de desenhar. Sinto muita falta", afirma.

    Por um minuto fechado, o semblante volta a se iluminar e ele abre mais uma vez o sorriso: "Sonho todos os dias que estou desenhando, fazendo detalhes da ilustração como se estivesse no meu estúdio"

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