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    análise

    Emblemático de seu tempo, 'Rent' retrata romantismo sitiado

    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    14/12/2016 02h10

    "Rent" surgiu na cultura pop americana, a partir da cena alternativa de Nova York, num momento em que pressões e contrapressões políticas sobre a cultura se avolumavam, nos EUA e pelo Ocidente, Brasil inclusive.

    Havia a ascensão da chamada política de identidade, afirmando respeito à diferença étnica e de gênero. Em parte, era resposta ao esforço reacionário de tornar a Aids em "praga gay", de criminalizar a homossexualidade recorrendo à retórica religiosa.

    E havia o contra-ataque, nas críticas à chamada correção política, por censurar o suposto direito cristão, por exemplo, à homofobia.

    Como pano de fundo alegórico, havia a aproximação do fim do milênio.

    No teatro, isso tudo se refletiu em peças de temática semelhante em diversos gêneros, de "Angels in America" à brasileira "O Livro de Jó". Até algumas imagens se repetiam em cena, como a do anjo. Em "Rent", ele ou ela é Angel, transgênero, HIV positivo, artista de rua.

    O musical deixou frases emblemáticas, que refletiam as concepções do autor e da época. Uma das mais repetidas era "no day but today", que pode ser traduzida como "não existe outro dia além de hoje" –quatro dos protagonistas de "Rent" têm Aids, então considerada mortal.

    Como quase tudo no musical de Jonathan Larson, trata-se de uma redescoberta ou uma reafirmação do ideário de 1968, "aqui e agora".

    Formalmente, lembra "Hair", daquele ano de 1968, mas havia também especificidades em "Rent" que o tornaram simbólico de seu tempo –e fazem com que sobreviva na indústria cultural, por exemplo, como influência maior sobre "Hamilton".

    O que mais chamou a atenção de quem viu então foram alguns quadros e papéis. A grande canção é "Seasons of Love", que é coral, espelha o espírito comunitário –como "Aquarius", em "Hair".

    Entre os papéis que lançaram carreiras de atores nos EUA e também no Brasil, o narrador Mark era um deles. Angel era outro. E o maior foi Mimi, sensual e quebradiça, trágica, em torno da qual a trama se desenvolve.

    No caso, o papel deve muito à atriz que o criou desde as primeiras oficinas, anos antes da estreia, Daphne Rubin-Vega. Negra com traços latinos, magra, agressiva, ela retratava de maneira arrebatadora a dependência de heroína misturada à paixão amorosa de Mimi. Na versão brasileira, Andrea Marquee também deixou sua marca.

    Sendo inspirado em Puccini, "Rent" era uma sagração pop da cultura boêmia. Nomes de personagens e várias das canções, alguma religiosidade, a doença: muito do musical traça um paralelo com o fim de século anterior, do romantismo sitiado.

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