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    Em 'Neruda', diretor chileno Pablo Larraín faz antibiografia do poeta

    GUILHERME GENESTRETI
    DE SÃO PAULO

    15/12/2016 02h28

    Ao receber o Nobel de Literatura, em 1971, o poeta chileno Pablo Neruda discursou sobre uma longa travessia pelos Andes que fez no lombo de um cavalo que sangrava pelas patas e narinas, tendo cruzado "círculos mágicos" e visto vaqueiros dançando ao redor do crânio de um boi.

    O texto cheio de imagens, não se sabe se reais ou imaginadas, foi o que deu ao diretor Pablo Larraín, conterrâneo do poeta, a chave para fazer um filme sobre o escritor mais conhecido de seu país -um homem "tão denso", descreve o cineasta, "que não caberia em biografia tradicional".

    Divulgação
    Gael García Bernal em cena de 'Neruda'Divulgação
    Gael García Bernal é Oscar Peluchonneau no filme 'Neruda', de Pablo Larraín

    "Neruda", que estreia nesta quinta (15) no Brasil escorado em uma indicação ao Globo de Ouro e uma aposta certa entre os indicados a filme estrangeiro no Oscar, não é uma biografia tradicional.

    Mais do que uma obra sobre Neruda, é uma obra "nerudiana", segundo Larraín: não se atém a fatos, mas ficcionaliza seu universo literário. Um choque e tanto para o público brasileiro, acostumado a cinebiografias esquemáticas como "Elis" e "Tim Maia".

    "Quis um filme que tivesse a voz, o tom de Neruda", diz Larraín à Folha. "Uma ficção com elementos do mundo nerudiano, pessoas reais, mas sob uma chave nerudiana."

    O diretor chileno se apoia num período crítico da vida do poeta, interpretado por Luis Gnecco: o fim da década de 1940, momento em que ele, senador eleito pelo Partido Comunista, é cassado por suas posições políticas e cai na clandestinidade. Tem em seu encalço o investigador Peluchonneau, papel do mexicano Gael García Bernal.

    O policial, que narra a trama, expele desprezo contra os comunistas ("gostam do suor do povo, mas bebem champanhe") e contra a "poesia barata" de Neruda, poeta que, segundo crê Peluchonneau, as mulheres "imaginam fazer amor com uma rosa na boca".

    O investigador diz que precisa capturar Neruda porque não quer ser um personagem secundário nessa grande história. Quer o protagonismo. Já o poeta, algo ególatra, se alimenta do jogo de gato e rato, e a trama deixa de distinguir fato e fantasia.

    Alegórica, a perseguição revela o grande mote do longa: seria uma ficção histórica ou uma reflexão sobre o processo da criação artística?

    "É muito difícil fazer uma biografia que funcione em apenas duas horas", diz Larraín. "Neruda foi poeta, político, viajante, amante. Mais do que qualquer outra coisa, me interessam o imaginário, os sonhos, a visão de mundo. O filme é uma antibiografia."

    SANGUE POLÍTICO

    O cineasta também apostou em métodos pouco ortodoxos: diz que não se ateve ao roteiro e mudou sequências inteiras no momento da filmagem.

    "O filme foi nascendo enquanto eu encontrava o espírito dele", diz o diretor de 40 anos, principal nome do cinema chileno da atualidade.

    Marcado por uma filmografia com pesadas tintas políticas, Larraín já explorou os porões da Igreja em "O Clube" (2015), se infiltrou na Era Kennedy em "Jackie" e, principalmente, cutucou as feridas da ditadura de Pinochet numa trilogia informal, que vai do golpe ("Post Mortem", 2010) ao plebiscito que a encerrou ("No", 2012), passando pelos anos de seu auge ("Tony Manero", 2008).

    O ditador aparece numa ponta em "Neruda" como o chefe de um campo de concentração de presos políticos, uma "raposa de olhos azuis".

    A política não podia mesmo passar longe de Larraín, filho de um ex-presidente do Senado do Chile e de uma ex-ministra do governo Piñera, ambos alinhados à direita.

    Em "Neruda", a política respira nos poemas do personagem, que surge cheio de ira, exaltando a labuta proletária e o sentimento chileno nos textos de "Canto Geral". "Ele não foi só o poeta do amor sensual. Essa raiva é uma de suas várias camadas."

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