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    Retrospectiva de Cy Twombly abre celebração dos 40 anos do Pompidou

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL A PARIS

    15/12/2016 02h30

    Na pintura de Cy Twombly, a violência é branca. Não só a violência de um assassinato mas a forma como a vida ataca os sentidos e envolve o corpo. O branco que domina grande parte de suas composições, como todas as telas que abrem sua retrospectiva agora no Pompidou, em Paris, tem a ver com sua obsessão em levar para o plano do quadro uma atmosfera vulcânica.

    "Eu gosto de branco. Não é tão fechado, é como se não tivesse começo nem fim", disse o americano, numa entrevista anos atrás. "A pintura não tem centro, ela vem de um lado e vai para o outro. É o pedaço de papel, você pode escrever ou machucar a folha."

    Twombly, de fato, rabiscou e arranhou muito as superfícies esbranquiçadas de suas telas ao longo de seis décadas de pintura, uma obra construída entre o sul dos Estados Unidos, onde nasceu, e Roma, onde passou o resto da vida até sua morte, há cinco anos.

    Divulgação
    "Blooming", tela de Cy Twombly realizada em 2008, que está em retrospectiva do artista no Pompidou
    "Blooming", tela de Cy Twombly realizada em 2008, que está em retrospectiva do artista no Pompidou

    Seus quadros, americanos demais na Europa e europeus demais na América, funcionam como espécie de vórtice na história da arte, juntando pulsões antagônicas. Quando o establishment artístico fugia para Nova York no pós-Guerra, Twombly, obcecado por Rafael, Poussin e Rembrandt, fez o caminho contrário, indo buscar as referências clássicas que vibram sob a pele esgarçada de suas pinturas.

    Não por acaso, o Pompidou, espécie de nave espacial vítrea alojada no coração de Paris, escolheu esse estranho no ninho para inaugurar uma série de grandes exposições celebrando suas quatro décadas de existência, que se completam no ano que vem.

    SANGUE E VÍSCERAS
    "Sou um pintor mediterrâneo", dizia Twombly. "Gosto da ideia de alguém do norte no Mediterrâneo, só que com mais sangue e vísceras."

    Mesmo não retratando o mar, aliás, suas telas -abstratas até certo ponto- têm a placidez enganosa da calma antes da tempestade. Na superfície, Twombly era o pintor dos rabiscos, de traços fluidos numa imensidão inabalável. Mas o sangue às vezes vem à tona como um dado da realidade, uma reação às atrocidades do mundo.

    Talvez seja essa a maior força da mostra no Pompidou, um conjunto de obras-primas capaz de ancorar o que parecem devaneios no terreno mais sólido e agreste.

    Não faltam em seus quadros alusões a passagens literárias, em especial à morte de Aquiles na "Ilíada". Mas uma das salas mais potentes da mostra reúne uma sequência quase cinematográfica de telas inspiradas numa tragédia mais que real -o assassinato televisionado de Kennedy.

    São quadros quase todos brancos, ou de um chumbo diluído, em que a ação, rajadas violentas de tinta, entre o vermelho do sangue do presidente e o rosa do vestido da primeira-dama, acontece mais ou menos na altura dos olhos do espectador, oscilando de uma tela para outra como um reflexo atordoado do horror.

    "Ele tinha medo que a América fosse sucumbir à violência", diz Jonas Storsve, que organiza a mostra, sobre a série mostrada primeiro em Nova York pouco depois do atentado contra Kennedy, em 1963. "Mas a crítica foi muito severa e chamou isso de um belo fiasco, algo antiquado, maneirista, meio europeu."

    Twombly reagiu deixando de pintar por uns anos. Seu retorno às telas, visto em toda a sua exuberância algumas salas mais adiante, foi uma grande reflexão, ou ataque, à secura do minimalismo americano que então vivia o auge.

    Na famosa série dos quadros negros, como a sequência ficou conhecida, ele pinta silhuetas de formas geométricas esquemáticas contra um fundo escuro, quadrados e retângulos que parecem saídos de uma linha de montagem.

    Esse rigor às vezes se abala com algumas obras desse ciclo, em que Twombly faz rabiscos circulares, como uma criança num acesso de raiva com um giz de cera na mão.

    Suas esculturas, aliás, ficam entre uma vontade construtiva e um olhar mais despojado lançado à vida. Juntas numa sala envidraçada, suas estranhas torres e alavancas ecoam lá fora os poucos acidentes do skyline parisiense, a torre Eiffel e Sacré Coeur, lembrando que estamos diante de um americano em Paris.

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