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    CRÍTICA

    Na queda do comunismo, Nobel tem tema de sua obra mais sólida

    SYLVIA COLOMBO
    DE BUENOS AIRES

    17/12/2016 02h20

    "O Fim do Homem Soviético" talvez seja o livro mais confessional da Nobel Svetlana Aleksiévitch, 68. Não que ela fale demais de si de forma direta; só algumas páginas sob o título "Observações de uma cúmplice" revelam sua relação com o objeto da obra.

    Ali ela conta: "Eu sinto que conheço essa pessoa. Nós vivemos lado a lado por muito tempo. Eu sou essa pessoa."

    Como em outros trabalhos, o livro trata de uma tragédia pela qual passou o mundo soviético a partir de depoimentos dos que a viveram. Para isso, usa a técnica inspirada no autor, como ela bielorrusso, Ales Adamovich (1927-1994), que consiste em costurar vários relatos, construindo um "romance coletivo" ou uma "escrita polifônica".

    Foi assim com as mulheres na Segunda Guerra ("A Guerra Não Tem Rosto de Mulher") e com os sobreviventes da tragédia nuclear de Tchernóbil ("Vozes de Tchernóbil"), já publicados no Brasil.

    Aqui, porém, Aleksiévitch parece querer, além de contar uma história, investigar algo sobre si. Nascida e criada no mundo soviético, a autora pertenceu a uma geração educada no projeto de "transformar a alma humana" que era o comunismo de então, mas que, quando cresceu, passou a questionar o regime e a desejar a abertura do país, a apoiar a perestroika e a desejar o futuro incerto que ela traria.

    Aleksiévitch reúne depoimentos de pessoas que não aguentaram o baque. As histórias mesclam os sentimentos surgidos com o fim da União Soviética, especialmente dos criados sob forte disciplina ideológica, ou que lutaram guerras pelo regime. De uma hora para outra, passaram de heróis a traidores.

    Comentam a vergonha que sentem pelo furor capitalista alheio, têm nostalgia da palavra "camarada" e de um mundo sem dinheiro, mas com estabilidade material. A maioria tem muita idade, e entrou na velhice empobrecida. Muitas se suicidaram.

    Aleksiévitch expõe, também, o impacto sobre muitos, e sobre ela própria, da revelação dos crimes do regime.

    Ela não escreve sobre política diretamente. "Não faço perguntas sobre o socialismo, mas sobre o amor, o ciúme, a infância, a velhice". O conjunto resulta, mais uma vez, numa obra de forte conteúdo humano e extremamente política, ainda que nas entrelinhas.

    O Fim Do Homem Soviético
    Svetlana Aleksiévitch
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    Na Flip, Aleksiévitch contou ter se frustrado com o jornalismo, por achar que ele falha ao tentar captar a realidade, pois o impacto das notícias na vida das pessoas fica em segundo plano. Numa entrevista, disse: "A realidade sempre me atraiu, ela me tortura e me hipnotiza, é por isso que quero capturá-la no papel."

    "O Fim do Homem Soviético" talvez seja a obra em que ela atinge de forma mais sólida esse objetivo, aos incluir, na indagação coletiva, um questionamento a si própria.

    O FIM DO HOMEM SOVIÉTICO
    AUTORA Svetlana Aleksiévitch
    TRADUÇÃO Lucas Simone
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 64,90 (596 págs.); R$ 39,90 (e-book)

    Edição impressa

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