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    Após 113 anos, Met Opera encena obra de uma mulher; veja repercussão

    WILLIAM ROBIN
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    19/12/2016 14h22

    Neste mês, a Metropolitan Opera de Nova York vai encenar "L'Amour de Loin", de Kaija Saarhajo, a primeira ópera composta por uma mulher que a companhia encena desde 1903.

    O "New York Times" pediu a dez compositoras que refletissem sobre essa notável disparidade, e sobre o que significa ser uma mulher criadora de óperas hoje. Abaixo, trechos dessas entrevistas.

    Jennifer Higdon ("Cold Mountain", 2015)
    Fico feliz por eles enfim terem decidido fazê-lo. Cento e treze anos. É meio espantoso pensar nisso. Se eles forem além de uma ópera composta por uma mulher e chegarem a uma segunda e terceira, creio que as pessoas poderão sentir mais esperança. Mas para aqueles que compõem óperas, é preciso continuar trabalhando. Você precisa continuar encontrando maneiras de levar a arte ao público de toda maneira que puder, você precisa continuar fazendo o melhor que puder. Não é fácil ganhar a vida com a arte, mas é possível.

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    Kamala Sankaram ("Miranda" , 2012; "Enchantress", 2014; "Thumbprint", 2014; "Looking at You", 2016)
    Pequenas coisas me deram a entender que eu talvez estivesse sendo tratada de modo diferente porque sou mulher. Um pianista que tocava o acompanhamento em uma audição perguntou a que horas o compositor chegaria, e quando eu disse que era a compositora, respondeu que "ah, essa música é muito fofa". Uma resenha classificou uma composição minha como "suave". Há coisinhas que nos levam a refletir se a linguagem empregada é afetada por questões de gênero, mas não estou falando de nada escancarado, do tipo "essa pessoa não está qualificada porque é mulher". Mas o fenômeno tem dois lados. Um deles é: as pessoas estão tratando você de modo diferente porque você é mulher? E o outro lado é: o seu acesso é diferente porque você é mulher? E sim, isso é completamente verdade. Quando todas as pessoas que ocupam postos administrativos nas companhias de ópera são homens, é simplesmente a natureza humana se manifestando. Tendemos a pensar em pessoas semelhantes a nós quando estamos selecionando alguém para preencher uma vaga aberta.

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    Olga Neuwirth ("Bahlamms Fest", 1998; "Lost Highway", 2003; "American Lulu", 2011; "The Outcast", 2011; atualmente trabalhando em "Orlando")
    Vivemos no mundo da música clássica, que continua a ser branco, masculino e patriarcal –em outras palavras, ainda está enraizado em um sistema hegemônico. Já me chamaram muitas vezes de "fedelha atrevida". Esse tipo de termo é aplicado a alguém que não tem direito ao poder. Mas alguém chama um homem jovem de "atrevido" da mesma maneira? Em lugar disso, ele é definido como "um sujeito de garra", e "garra", no contexto, quer dizer que ele merece respeito e atenção. Alguns produtores de ópera orgulhosamente proclamam que "agora temos um festival só para compositoras de ópera" ou "vamos nos concentrar exclusivamente em mulheres como regentes"; no entanto, se a sua atitude interna for a de que "bem, já fizemos nossa parte e podemos continuar como antes", nada muda. Em última análise, o que isso significa –e o mesmo se aplica a todas as minorias que saíram em defesa de seus direitos– é que as pessoas diferentes deveriam se unir, com mais abertura, compreensão e gentileza, e não com arrogância, e que formas opostas e diferentes de vida e de expressão podem interagir sem que alguém fique o tempo todo chamando a atenção para o fato.

    *

    Missy Mazzoli ("Songs from the Uproar", 2012; "Breaking the Waves", 2015)
    As mulheres foram encorajadas a não fazer parte desse campo de um milhão de maneiras sutis, e também de algumas maneiras muito óbvias. Quando as pessoas me perguntam sobre ser uma mulher compositora de ópera, a coisa que sempre tento dizer é que é uma atividade sem história, na verdade. A história das mulheres compositoras de óperas começou, sei lá, cinco anos atrás. Sim, existem exceções –temos Ethel Smyth, temos Hildegard, temos mulheres que compuseram óperas, nos últimos 500 anos –mas são tão poucos exemplos, e tão isolados, que é possível contá-los nos dedos de uma mão. Isso posto, existe uma responsabilidade que vem sendo ignorada, quanto a isso, que é a de procurar por essas mulheres. E, mais importante, dar oportunidades a essas mulheres com base em seu potencial, e não em sua experiência. O que vejo muito é que os homens recebem oportunidades com base em seu potencial, Muitos homens jovens recebem sua primeira oportunidade de produzir uma ópera antes que tenham escrito um conjunto considerável de peças para voz. E no caso das mulheres, as pessoas sempre querem ver provas. Querem ver que você já fez alguma coisa antes de lhe oferecerem uma oportunidade. É uma situação claramente impossível. Se você é uma mulher jovem, tem um impulso dramático e sente atração por essa forma de arte, mas ninguém vai lhe dar sua primeira grande oportunidade, se torna impossível conquistar espaço nesse mundo.

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    Tania León ("Scourge of Hyachints" (1999); trabalhando agora em "Little Rock Nine")
    A cor não pode ser barreira. O sexo não pode ser barreira. Qualquer forma de orientação não pode ser barreira. Somos a raça humana. O que está acontecendo conosco? O que há de errado? Temos de mudar esse panorama, e a única maneira de fazê-lo é realmente fazê-lo. Não procurar o álibi de que não há dinheiro, de que sempre é preciso buscar alguma coisa que tenha comprovadamente funcionado no passado. De outra forma, não existe risco, e se não corrermos riscos, se não apostarmos no desconhecido, não saberemos o quanto estamos ou não estamos avançando.

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    Bora Yoon ("Sunken Cathedral", 2015)
    Por que as mulheres compositoras continuam desaparecendo da mente das pessoas? Compor é provavelmente uma das coisas mais inatamente femininas que se pode fazer. É criar; é criação. E sempre me pareceu estranho que ficasse relegado a um campo muito dominado pelos homens. As mulheres percebem melhor as nuanças, igualmente, e compreender a complexidade de conflitos e o emaranhado daquilo que torna a ópera realmente grande está na verdade nesses relacionamentos emaranhados: dinâmicas externas mas também internas. As mulheres são mais expressivas ao expor esse tipo de coisa –na canção, mesmo no timbre, nos instrumentos, e na concepção visual também. As mulheres são muito holísticas quanto a essas coisas.

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    Anna Clyne (atualmente trabalhando em sua primeira ópera, "Eva")
    Eu não penso muito em questões de gênero, na verdade. Vejo-me como compositora mais do que como mulher compositora. Mas sinto-me muito afortunada porque estou em uma situação na qual as bases já foram estabelecidas pelas gerações precedentes. O tema da ópera é Eva Hesse, uma artista em Nova York nos anos 1960. Ser artista e mulher naquela época era um verdadeiro desafio, e é natural que isso seja parte da narrativa da ópera. Acabei de ler os diários dela dois dias atrás, e eles definitivamente oferecem um vislumbre de suas experiências como mulher artista. Uma coisa que ela disse e ainda ressoa hoje é que a maneira de derrotar a discriminação na arte é com a arte, e que a excelência não tem sexo. Quando li isso, concordei imediatamente. Não é sempre fácil, mas ocasionalmente basta fazer o trabalho e isso dirá muito.

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    Unsuk Chin ("Alice in Wonderland" (2007); atualmente trabalhando em "Alice Through the Looking Glass"
    O mundo da ópera é quase por definição conservador. Porque as companhias de ópera são instituições complexas, há pressões comerciais fortes, hábitos enraizados, excesso de repertório, astros e estrelas, e expectativas estereotipadas. No entanto, para prosperar no século 21, e fazer justiça ao repertório maravilhosamente diverso disponível, é preciso haver mais experimentação e diversidade no mundo operístico, de modo geral. Embora eu pertença a uma minoria em minha profissão (algumas pessoas ainda parecem pensar que música clássica é algo composto por homens europeus mortos), não parei para pensar muito nos preconceitos, nos 30 anos em que estou no ramo, porque isso sufocaria minhas composições. Só tentei fazer meu trabalho o melhor que podia, e não pensar sobre o que outras pessoas podem acreditar, porque isso é algo que eu não teria como mudar, de qualquer maneira.

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    Meredith Monk ("Atlas", 1991)
    O mundo clássico é muito difícil para as mulheres. Simplesmente não somos levadas tão a sério quanto os homens. Há certos procedimentos na tradição europeia ocidental que são muito respeitados, e minha música oferece outras maneiras de fazer as coisas, igualmente ricas e fortes, mas com um conjunto diferente de procedimentos. Eu sei que ocasionalmente a música não foi levada tão a sério quanto poderia, porque sua meticulosidade e complexidade não são aparentes. Certa vez eu estava trabalhando com um coral, entreguei minhas partituras aos cantores e eles disseram que nem precisavam de instruções, podiam cantar direto, era uma partitura simples. Eu disse que cantassem, então, e quanto mais eles tentavam, mais percebiam o quanto era difícil. A superfície parece muito simples, mas na realidade é muito complexa e intrincada.

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    Lisa Bielawa ("Ideas of Good and Evil", 1996; "Phrenic Crush", 1997; "Hildegurls", 1998; "Spooky Action at a Distance", 2000; "Chance Encounter", 2007; e "Vireo", uma ópera concebida para televisão que está em produção no momento)
    O mais importante é cuidar de você mesma. O que me interessa é a alegria, comunidades musicais prósperas, criar trabalhos vitais tanto para mulheres quanto para homens. Para que isso funcionasse, tive de encontrar maneiras de não contar a mim mesma aquelas histórias de bater constantemente em portas que não se abrem. As mulheres leitoras sempre conseguiram se identificar com os fortes personagens masculinos das histórias que leem, porque esses protagonistas são criados para representar a condição humana. Os papéis femininos na ópera deveriam ser capazes de inspirar a mesma identificação. A pessoa que assiste a "Vireo" deveria sentir aquela fisgada: isso trata da condição humana. Isso cura a minha ferida humana básica. É isso que queremos em uma ópera, certo? Não queremos contar uma história feminina historicamente específica. O lado tópico dela não é realmente a parte mais atraente; não é a parte operística.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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