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    Crítica

    'O que Está por Vir' desfia descompasso em várias camadas

    CÁSSIO STARLING CARLOS
    CRÍTICO DA FOLHA

    22/12/2016 02h08

    A chegada de "O que Está por Vir" no final de um ano lembrado pela desesperança reafirma a vitalidade que os filmes podem exercer sobre seu tempo. O longa, premiado como melhor direção para a francesa Mia Hansen-Løve no Festival de Berlim deste ano, reverbera questões equivalentes às postas por "Aquarius", como o anacronismo e a dissintonia.

    Outro tema comum aos dois longas encontra-se na ênfase que ambos dão às experiências de transmissão, ao que pode passar adiante ou se perder enquanto envelhecemos.

    Tanto como a Clara de "Aquarius", os movimentos da professora de filosofia Nathalie Chazeaux dão consistência à personagem e permitem atestar um estado do mundo. Ambas são manifestações acentuadas de crises, movem-se em meio a ruínas, buscam abrigos para seguir adiante. Por isso, encarnam tanto o ideal de resistência.

    No papel central, Isabelle Huppert proporciona normalidade e veracidade à personagem, num desempenho de intenso contraste com o da mesma atriz em "Elle".

    A visita de Nathalie e família ao túmulo do escritor François-René de Chateaubriand na cena de abertura demarca a personalidade da protagonista e anuncia o descompasso que o filme desfia em múltiplas camadas.

    Sozinha no plano, a personagem lê uma placa que pede silêncio ao visitante em respeito ao desejo do escritor, de "repousar ali para escutar somente o mar e o vento". Entediada com o programa, a filha insiste para irem embora, pois a maré está subindo e ela "não quer dormir com Chateaubriand".

    A dissintonia entre o que move cada um e o sentimento de fim do prazo de validade em relação à aceleração do mundo são as duas questões que o filme representa evitando o enfadonho discurso nostálgico.

    O fim do casamento de Nathalie integra o mesmo contexto de dissoluções e de ultrapassamentos que também inclui o modelo rígido de seus livros didáticos e da perda de autonomia de sua mãe depressiva.

    Já a luta política dos jovens na escola, a criação de um site de filosofia ou a experiência de vida alternativa de seu pupilo Fabien são vistas da perspectiva da reinvenção.

    A extinção de seu mundo é reiterada no momento em que Nathalie descobre a tradução da obra de Günther Anders, "A Obsolescência do Homem", título mais que eloquente.

    Entretanto, o pessimismo ativo da personagem impede que ela se consuma num tipo de crítica baseada na recusa, recurso de defesa dos ranzinzas. A perda de laços não a empurra para o bunker. Ao contrário, força sua reabertura para o mundo.

    Em "Eden", longa anterior e mais pessimista de Hansen-Løve, a crise afetava um jovem DJ fascinado pelo hedonismo, mas que um dia tem de cair na real. Como um irmão antípoda, "O que Está por Vir" (belo título brasileiro) devolve o que se perdeu neste ano nefasto.

    *

    O QUE ESTÁ POR VIR (L'avenir)
    DIREÇÃO Mia Hansen-Løve
    ELENCO Isabelle Huppert, André Marcon, Roman Kolinka
    PRODUÇÃO França/Alemanha, 2016, 14 anos
    QUANDO: estreia nesta quinta (22)

    Edição impressa

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