Sotheby's via The New York Times | ||
Página da sinfonia de Mozart que havia atingido o maior preço em um leilão, $4 mi em 1987 |
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Ilustrada
Thursday, 31-Oct-2024 20:24:56 -03Suposto manuscrito de Beethoven questiona transparência de leilões
MICHAEL COOPER
DO "THE NEW YORK TIMES"28/12/2016 12h16
Quando uma partitura manuscrita de 232 páginas da épica Segunda Sinfonia de Mahler ("Ressurreição") foi vendida por US$ 5,6 milhões pela casa de leilões Sotheby's de Londres no mês passado, a transação destroçou um recorde estabelecido quase 30 anos atrás para o maior preço pago por um manuscrito musical.
A partitura de Mahler é um dos mais valiosos manuscritos pós-renascentistas já vendidos em leilão, e atraiu lances mais altos do que os recentes leilões do rascunho de "On the Road", de Jack Kerouac, ou da letra de Bob Dylan para "Like a Rolling Stone".
Mas uma partitura menos importante que terminou por não ser vendida naquele dia vem transfixando o mundo da música desde então. A curta partitura de um quarteto de cordas de Beethoven não encontrou compradores porque, antes do leilão, um estudioso questionou publicamente a afirmação da Sotheby's, e dos especialistas que ela contratou, de que a peça havia sido efetivamente manuscrita por Beethoven —o que deflagrou um debate acrimonioso no mundo em geral discreto e conservador da musicologia e do comércio de manuscritos.
Embora não seja incomum que especialistas divirjam sobre assuntos como esse —um quadro foi pintado por um dos velhos mestres ou por seus discípulos?—, o episódio referente a Beethoven despertou questões sobre a transparência dos leilões, em um momento no qual os manuscritos de música clássica se tornaram um grande negócio no mercado internacional.
Em julho, por exemplo, a casa de leilões Christie's vendeu a terceira mais cara partitura manuscrita de todos os tempos em um leilão: O Prelúdio, Fuga e Allegro de Bach para alaúde ou teclado em Mi bemol (BMV 998), por US$ 3,34 milhões.
Obras como essas raramente chegam ao mercado, mas quando o fazem atraem lances do mundo inteiro. No período preparatório para o leilão do mês passado, a maior parte da atenção se concentrava na partitura de Mahler, um importante manuscrito dado pela viúva do compositor, Alma, ao regente Willem Mengelberg e posteriormente adquirido por Gilbert Kaplan, um editor no ramo de finanças que desenvolveu o incomum passatempo de reger a sinfonia em questão à frente de diversas orquestras.
E então surgiu a disputa sobre a partitura atribuída a Beethoven.
A partitura traz 23 compassos de música: o alegretto em Si menor para um quarteto de cordas, peça recentemente redescoberta. O texto do catálogo da Sotheby's, abaixo de uma foto em alta resolução da partitura, era inequívoco: descrevia a peça como "manuscrito autografado", ou seja, escrito por Beethoven em pessoa, e afirmava que se tratava de uma cópia da peça, composta no dia anterior, que Beethoven escreveu como presente para um inglês que o estava visitando. (Uma inscrição na partitura, que se acredita tenha sido escrita no momento de sua criação, diz: "composto e escrito pessoalmente por Beethoven, 29 de novembro 1817 em Viena"). A expectativa era de que a partitura fosse vendida por US$ 248 mil.
A controvérsia irrompeu quando Barry Cooper, professor de música na Universidade de Manchester, Inglaterra, que publicou uma edição prática das sonatas de Beethoven para piano, procurou a BBC com a chocante afirmação de que a partitura "não tinha a letra de Beethoven".
Em entrevista ao "New York Times", ele disse que, em companhia de outro estudioso, havia informado anteriormente à Christie's que não acreditava que a partitura fosse genuína, e questionou a Sotheby's, que sabia que a Christie's havia recusado leiloar o manuscrito, por não informar no catálogo que havia uma diferença de opinião sobre o documento.
"Acredito que a Sotheby's deveria ter indicado que existia alguma dúvida sobre o manuscrito, porque eles sabiam disso", disse Cooper.
Simon Maguire, especialista sênior em livros e manuscritos na Sotheby's, disse que embora estivesse informado de que a Christie's havia rejeitado a partitura, não estava informado sobre os especialistas consultados pela Christie's, ou sobre o teor de suas dúvidas quanto ao manuscrito. Ele apontou que as casas de leilões se mantêm distanciadas para evitar acusações de conluio. (A Christie's se recusou a comentar.)
Maguire disse que a Sotheby's havia se baseado em opiniões de especialistas nos quais confia, entre os quais Nicholas Marston, professor de música no King's College, Universidade de Cambridge, e Otto Biba, diretor da Gesellschaft der Musikfreunde in Vienna, dois estudiosos de música altamente respeitados.
"Eles sinalizaram aprovação, disseram que a partitura era genuína, e mantiveram essa opinião depois disso", ele disse.
Maguire critica Cooper por ter julgado o manuscrito sem inspecioná-lo em pessoa. "Barry Cooper parece acreditar que dispõe de uma linha direta para Beethoven no céu, e que ele pode julgar uma peça sem ver o original", ele disse.
Cooper disse que não precisava inspecionar a partitura em pessoa, porque suas dúvidas têm por base a letra usada no manuscrito, o que inclui a forma pela qual os sinais naturais e as barras duplas estão grafados, e diferenças na grafia de diversas notas com relação a um manuscrito amplamente aceito da mesma obra que especialistas da Sotheby's descobriram em 1999.
Antes do leilão, a Sotheby's divulgou uma notificação sobre o lote, apontando que alguns especialistas acreditavam se tratar de uma cópia feita no século 19, mas acrescentando que "essa opinião não é aceita pela Sotheby's ou pela maioria dos mais renomados especialistas mundiais em Beethoven que inspecionaram o manuscrito pessoalmente".
Desde então, um drama nada comum na área de musicologia vem se desenrolando na mídia noticiosa britânica. O jornal "Telegraph" reportou que um dos especialistas que informou à Christie's que a partitura não mostrava a letra de Beethoven, Michael Ladenburger, diretor do museu Beethoven Haus, em Bonn, Alemanha, havia posteriormente tentado adquirir a partitura a preço baixo. O jornal cita Biba como tendo declarado que uma oferta como essa representaria conflito de interesse. Ladenburger disse ao "Telegraph" que a acusação era "simplesmente injusta", mas se recusou a estender seus comentários, afirmando em e-mail que "não quero esticar uma história que nada tem de lucrativo - não para mim mas para outros".
Biba disse que, embora acredite que a peça seja genuína, questiona a asserção da Sotheby's de que ele verificou sua autenticidade para a casa de leilões. "Não verifiquei o manuscrito para a Sotheby's porque não trabalho para qualquer casa de leilões, comerciante, comprador ou vendedor".
Marston, o especialista cuja opinião serve de base às afirmações da Sotheby's, disse em entrevista que havia concluído que a peça foi grafada por Beethoven apesar do que define como "anomalias", entre as quais a maneira pela qual as barras duplas foram grafadas e o fato de que a parte do manuscrito para a viola não incluía um sinal de sustenido em sua notação de tom. "Embora eu não negue que existem peculiaridades no documento", ele disse, "me inclino a dizer que as probabilidades indicam que devemos presumir que Beethoven o tenha escrito".
Ronald Spencer, advogado que trabalhou em casos de autenticação no mundo da arte, disse que essas disputas nada têm de incomum - e destacam a necessidade de que os compradores pesquisem por conta própria sobre as peças que pretendem adquirir.
"O comprador deve compreender que existem muito poucas peças de arte ou música sobre cuja gênese não haja visões negativas", disse Spencer. "O que o comprador está adquirindo, em resumo, é um consenso de opiniões de especialistas. E por definição consenso não quer dizer 100%".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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