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    Crítica

    J. M. Coetzee escreve obra cheia de passagens secretas

    CAMILA VON HOLDEFER
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    04/01/2017 02h00

    AFP
    ORG XMIT: 502601_0.tif Literatura: o escritor sul-africano J. M. Coetzee, em Roma, Itália. South-African writer John M.Coetzee, Nobel Price for literature, poses for photographers in Rome, 22 June 2004 during a literature festival. AFP PHOTO/ Tiziana FABI
    O escritor sul-africano J. M. Coetzee

    Estamos no século 18. Depois de uma temporada no Brasil, na Bahia, a inglesa Susan Barton é expulsa do navio no qual tentava regressar à sua terra natal. Sozinha, rema até chegar a uma ilha. Lá estão Cruso, um velho soturno, e seu escravo Sexta-feira.

    Passa-se um ano. Os três finalmente são resgatados, mas Cruso não resiste à travessia. Barton contrata um escritor, Daniel Foe, para relatar e publicar sua experiência.

    É óbvia a brincadeira de J.M. Coetzee com o "Robinson Crusoé" de Daniel Defoe. "Foe", porém, não conta uma história de aventura.

    Publicado originalmente em 1986, o livro marca uma das primeiras tentativas do sul-africano de explorar um tema ao qual retornaria, sobretudo em "Elizabeth Costello": o realismo. "Foe" não deixa, portanto, de ser mais um romance (dentre tantos) sobre a escrita de romances.

    Defoe foi um dos primeiros autores a perceber o valor da memória individual em uma narrativa. A época era propícia: a sociedade começava a valorizar o indivíduo e a concentrar uma variedade de credos, classes e origens, de modo que um bom relato autobiográfico sempre encontraria um leitor interessado.

    Ao contrário de seus predecessores, Defoe não extraiu seus enredos de mitos e lendas ou de figuras e fatos históricos, mas da experiência imediata. O realismo, porém, também reside na forma que o autor escolheu para apresentá-lo. Os detalhes fazem toda a diferença: deles depende a verossimilhança.

    A maneira pela qual a linguagem pode representar a realidade é tanto uma questão epistemológica quanto semântica. Coetzee tem consciência disso, mas aposta em uma dimensão menos abstrata da comunicação.

    Tudo indica que o escravo Sexta-feira não tem língua. A ele é vetada não apenas a escrita, mas também a fala, de onde deriva, afinal, toda a arte de contar histórias. Um homem é calado à força para que possa ser visto como um instrumento pelos demais. O que o humaniza é sua empatia e sua memória: seu poder de reagir à experiência alheia e de relatar a sua própria.

    Foe desaparece por um tempo. Susan continua seu monólogo, descrevendo os dias na Inglaterra com Sexta-feira. Constantemente, já que ela agora parece responsável pelo relato, Susan se pergunta como se deve narrar. Ao contrário do mundo real, o mundo criado por um escritor realista deve fazer sentido.

    Foe
    J. M. Coetzee
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    "Foe" vai ficando mais complexo na medida em que a narrativa de Susan avança. Estamos diante de um livro obscuro, cheio de passagens secretas, do qual uma mera resenha jamais daria conta. É bem sabido que Coetzee, Nobel de Literatura de 2003, é mestre nesses arranjos.

    FOE
    AUTOR: J. M. Coetzee
    TRADUÇÃO: José Rubens Siqueira
    EDITORA: Companhia Das Letras
    QUANTO: R$ 39,90 (144 PÁGS.)

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