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    ANÁLISE

    Dylan e Cohen: dois poetas judeus e algumas bandas viajantes

    RICARDO BONALUME NETO
    DE SÃO PAULO

    09/01/2017 02h10

    Quando o cantor e compositor americano Bob Dylan ganhou o prêmio Nobel de Literatura, em outubro passado, ficou claro que não era algo consensual. Alguns músicos, mas especialmente vários escritores, não gostaram da coisa. Onde se viu um músico pop ganhar o prêmio mais renomado da literatura mundial?

    Dylan ganhou o prêmio "por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana", segundo o comitê do Nobel.

    Uma interessante exceção nesse coro de críticos foi a opinião do também cantor e compositor canadense –e também judeu– Leonard Cohen.

    Para Cohen, o prêmio apenas reconhecia o óbvio. "Para mim, é como colocar uma medalha no monte Everest por ser a montanha mais alta".

    Infelizmente, em novembro passado, Cohen também virou notícia internacional, ao morrer com 82 anos. Curiosamente, ele havia declarado recentemente que estava "pronto para morrer". E morreu pouco tempo depois. Subiu bonito.

    Leonard Norman Cohen e Robert Allen Zimmerman (mais conhecido pelo nome artístico Bob Dylan) tinham muitas coisas em comum, além de serem judeus –embora o judaísmo e suas crenças serem fortes influências nas suas músicas.

    Dylan teve uma fase de "cristão renascido"; Cohen virou budista. Mas nunca deram as costas para a religião ancestral, mesmo que ela não dominasse suas composições.

    Mais importante que a religião –apesar de uma ocasional ênfase no espiritualismo–, eram temas como política, solidão, sexualidade e relacionamentos pessoais.

    O melhor dos dois são composições sobre relacionamentos amorosos. As músicas mais politizadas são, como tudo em política, passageiras. A Guerra do Vietnã terminou em 1975.

    Para ser fã de Cohen e Dylan é obviamente necessário saber inglês. Suas músicas não foram feitas para dançar ou tocar no elevador. São obras para refletir, pensar, até mesmo chorar, dependendo do estado emocional do ouvinte.

    Para escrever sobre Cohen é preciso obviamente revisitar vários de seus álbuns. Mas, depois do terceiro, dá vontade de cortar os pulsos. Ouça mais alguns, e você vai querer cortar os pulsos e também se jogar na frente do primeiro ônibus.

    O CANADENSE

    Talvez o seu melhor refrão seja este, de "Bird on the Wire" (1969): "Como um pássaro no fio/ Como um bêbado em um coral à meia-noite/ Eu tenho tentado, a meu modo, ser livre". É bonita, mas não é propriamente uma mensagem otimista.

    Ou então esse trecho de "Everybody Knows" (1988): "Todo mundo sabe que os dados estão viciados/ Todo mundo caminha com os dedos cruzados/ Todo mundo sabe que a guerra acabou/ Todo mundo sabe, os mocinhos perderam/ Todo mundo sabe que a luta foi armada/ Os pobres continuam pobres e os ricos ficam ricos/ É assim que as coisas são/ Todo mundo sabe".

    No mesmo álbum há uma canção de amor melancólica, mas apaixonada, típica de Cohen, "I'm Your Man" (título do disco). Nela, ele deixa claro: "Se você quiser um amante/ Eu farei tudo o que me pedir/ E se quiser outro tipo de amor/ Eu usarei uma máscara por você".

    Esse amante desesperado canta em seguida: "Mas um homem nunca recuperou uma mulher/ Por pedir de joelhos/ Ou eu rastejaria para você, querida/ E cairia aos teus pés/ E uivaria à sua beleza/ Como um cão no cio/ E eu me agarraria ao seu coração/ E choraria nos seus lençóis/ Diria por favor, por favor/ Eu sou o seu homem".

    Esse tipo de música combina perfeitamente com o modo de cantar do canadense. Mais que cantar, ele recita, usando uma voz gutural, intensamente masculina. Em uma canção, ele até brinca ironicamente que recebeu o "dom de uma voz dourada".

    O NORTE-AMERICANO

    Dylan –cuja voz chinfrim não deixaria um Sinatra com inveja– não ficava atrás quando se tratava de demonstrar o amor por uma mulher. Dois bons exemplos são "Lay, Lady Lay" (1969) e "I Want You" (1966).

    "Eu não nasci para perder você/ Eu quero você, eu quero você/ Eu quero você muito/ Querida, eu quero você", deixou ele claro em "I Want You".

    "Deite, dama, deite, deite-se em minha grande cama de latão/ Fique, dama, fique, fique por algum tempo com seu homem/ Até o amanhecer, então você o fará sorrir/ As roupas dele estão sujas mas as mãos dele estão limpas/ E você é a melhor coisa que ele já viu", trecho de "Lay, Lady Lay".

    Os anos 1960 e 1970 produziram as bandas, as músicas, os cantores e os compositores seminais da música pop anglo-saxã. Foi o caso do mais importante conjunto de todos os tempos, The Beatles; seguem The Who, The Rollling Stones, as várias bandas de Eric Clapton e, depois, o punk melhorado por The Clash, entre outros

    Assim como Cohen e Dylan, todos tiveram seus momentos altos e baixos. O melhor álbum de todos os tempos continua sendo "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" (1967), dos Beatles; a música mais famosa do período pode ser "Like a Rolling Stone" (1965), de Dylan.

    Cohen, contudo, foi mais consistente. É mais difícil achar um álbum que se destaque muito acima do resto; mas sua canção mais famosa é certamente "Hallelujah", de 1984.

    Uma elegia é um lamento pela morte de alguém respeitado, querido, algo derivado da poesia dos gregos antigos. O crítico André Barcinski, desta Folha, conseguiu algo assim em texto publicado no jornal em 12 de novembro passado sobre Cohen: "Ele teve uma vida amorosa das mais intensas e frequentemente descreveu-a em canções". Quem não gostaria de ter isso na sua lápide?

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