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    Crítica

    Em 'Candy Darling', Horácio Costa faz reflexão feroz da homofobia

    LEONARDO GANDOLFI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    15/01/2017 02h05

    Num poema que se passa no hospital Albert Einstein, uma paciente trans —"talvez se recuperando de uma cirurgia de mudança de sexo"— caminha no saguão. Assistindo atentamente a essa cena, algumas senhoras conversam sobre orquídeas. Então lemos: "Há algo de novo na paisagem e as senhoras, ah, / têm andado mais cuidadosas com o que dizem".

    Em seguida, certo assunto dos jornais tem tanta urgência que atinge a própria escrita dos versos: "1 filho de 8 anos" é "+ delicadinho q a encomenda" e, por isso, o pai o espanca até a morte. A partir da notícia, logo esquecida pela imprensa, Horácio Costa dá início a uma feroz reflexão sobre cultura homofóbica, democracia e o frágil lugar do poema no meio disso tudo.

    Por esses exemplos, pode-se notar que o livro "A Hora e Vez de Candy Darling" está imerso no tempo presente, ao mesmo tempo que consegue flagrar e vê-lo por fora. E isso acontece porque, como escreve o próprio poeta, "ver é um ato político".

    IMDB/Divulgação
    actress Candy Darling Foto: IMDB/Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Candy Darling com Andy Warhol, de quem foi musa, a caminho de um show de Lou Reed

    Dessa forma, as revoluções que interessam se dão menos em praças e mais em lugares e hábitos da intimidade. É por isso que "ato político" —do qual faz parte, inclusive, o homoerotismo— diz respeito aqui a uma forma de ativismo que atua sobre a linguagem e os afetos, deslocando-os na esfera pública por meio da voz no livro.

    Daí que um poema de amor possa se chamar "História do Brasil". Nele, a "história só tem sentido / se feita pele", caso contrário, diz o autor: "Seremos sempre aqueles seres / perdidos em um continente / interessante e sepulcral".

    Por falar em história, o livro também busca entender os mecanismos de legitimação da memória, nos quais se inclui o risco de uma versão do passado se tornar unívoca, segundo certas estratégias de poder. Mais do que evitar tal perigo, os poemas tentam dar a ver formas de lidar com ele.

    Nesse sentido, chama atenção o poema em que é narrado o culto para Vladimir Herzog na catedral de São Paulo, sob vigilância dos militares em 1975. Depois de cruzar sua versão dos fatos com referências a obras de artistas como Tintoretto, Horácio afirma: "O que de fato se passou já não me lembro / e era eu mesmo quem estava lá transido / de medo e feito adulto por civilidade".

    Com isso, a poesia passa a atuar como uma espécie de suplemento, criando espaços de diferença e hesitação. Espaços esses que tendem a desarmar os discursos normativos responsáveis por noções estanques de história e identidade.

    Por essas e outras razões, "A Hora e Vez de Candy Darling" é um grande livro que traz um poeta no auge da forma. Com seus poemas, temos aquela sensação especial de que enfim podemos ser contemporâneos de nosso próprio tempo, tal qual uma conquista.

    O título faz referência ao célebre conto de Guimarães Rosa sobre morte e redenção. E ao mesmo tempo homenageia a atriz trans que foi musa de Andy Warhol, morta prematuramente em 1974 e que, nos últimos anos, acabou por se tornar ícone da cultura pop.

    LEONARDO GANDOLFI é poeta e professor de literatura portuguesa da Unifesp.

    *

    A HORA E VEZ DE CANDY DARLING
    AUTOR Horácio Costa
    EDITORA Martelo
    QUANTO: R$ 33 (76 págs.)

    Edição impressa

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