O documentário "Axé - Canto do Povo de um Lugar", de Chico Kertész, é interativo. Contando cronologicamente a cena musical baiana desde os anos 1980, cutuca aos poucos a memória do espectador.
Editado de maneira tradicional, entrelaça imagens de arquivo com depoimentos recentes de cantores, músicos, produtores e radialistas.
Quando o nome de uma banda é citado, a primeira reação de quem vê é cética. "Banda Reflexus? Nunca ouvi falar!", pode pensar alguém na plateia. Que nada! No instante seguinte, surge na tela, no programa do Chacrinha, a Reflexus e um de seus hits: "Ilha, ilha do amor, Madagascar/ Ilha, ilha do amor...".
Assim, "Axé" vai destravando um refrão pegajoso atrás de outro, para provar que brasileiros quarentões ou quase lá não passaram incólumes pela febre do gênero.
Ormuzd Alves - 5.jun.1992/Folhapress | ||
Show de Daniela Mercury em 1992 no vão livre do Masp, em São Paulo |
Podem se lembrar de Luiz Caldas, mesmo que demorem a cantarolar seu repertório. Ou podem cantar facilmente "Xô, Satanás", sem conseguir responder quem a gravou.
Axé, para ser exato, não estritamente é um gênero musical. "É tudo que você puder chamar de axé", diz Caetano Veloso. Ele e Gil têm depoimentos no documentário e, no papel habitual de avalistas da cultura baiana, ajudam a traçar a genealogia da cena.
É possível dizer que axé é batucada africana, de origens variadas, inserida no mercado pop por músicos baianos. Sim, o axé é mesmo o canto de um lugar. Pode existir rock gaúcho ou samba paulista, mas axé é só baiano. Porque veio das ruas de Salvador.
O documentário é didático ao mostrar o início de carreira de seus principais representantes, de Luiz Caldas, talentoso e primeiro artista a representar o axé para fora da Bahia, em 1985, a Saulo Fernandes, estrela mais recente, em carreira solo desde 2008.
LONGE DA GRAVADORA
Fica bem clara uma diferença do axé para outras ondas na música brasileira, como o pagode ou o sertanejo.
Seus artistas começaram nos blocos do Carnaval baiano, em cima dos trios elétricos. O foco era cantar na rua, ter a sensação de comandar a festa que vivenciavam desde garotos. Gravar um disco era uma realidade distante.
Ironicamente, o axé teria mais de duas dezenas de álbuns vendendo mais de 1 milhão de cópias, de Netinho, nos anos 1990, a Harmonia do Samba, na década seguinte.
A expansão para além das fronteiras baianas se deveu a agentes e produtores locais, que foram às gravadoras do eixo Rio-São Paulo com uma fitinha no bolso, muitas vezes com somente uma música de artistas desconhecidos.
"Axé" mostra bem essa batalha. O agente de Luiz Caldas só conseguiu um espaço no programa do Chacrinha driblando os pedidos de dinheiro para sua inclusão entre os convidados. Apenas quando o próprio Chacrinha ouviu "Fricote" e gostou é que o cantor cavou sua aparição na TV nacional, e sua canção virou o hit de 1985.
Outros nomes não apenas dispensaram o empurrão das gravadoras mas superaram previsões negativas. Fenômeno em Salvador, o Olodum apresentava com seus tambores letras enormes e cheias de palavras incomuns, a antítese do sucesso popular dançante. Deu no que deu, nas parcerias internacionais com Paul Simon e Michael Jackson.
Daniela Mercury não teve no disco seu principal trampolim. Em 1992, ela trocou os paralelepípedos de Salvador pelo asfalto de São Paulo, ao fechar, literalmente, a avenida Paulista ao dar um show no vão do Masp, na hora do almoço. Virou assunto na cidade de um dia para o outro.
A decadência atual do gênero na indústria do disco é creditada em depoimentos no filme a uma desunião de seus integrantes. Falta ali uma análise sobre o esmorecimento dessa cena fora da Bahia.
A opção do diretor pela celebração é clara e compreensível. O axé segue como trilha de festa na Bahia. Poucas vezes batuque e harmonia combinaram tão bem. É por isso que o espectador sai do cinema cantando algum refrão.
O jornalista viajou a convite da produção do filme.
AXÉ - CANTO DO POVO DE UM LUGAR
DIREÇÃO Chico Kertész
PRODUÇÃO Brasil, 2016, livre
QUANDO estreia na quinta (19)