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    Arquiteto Jean Nouvel vira refém do luxo em obras como o Louvre árabe

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL A MIAMI

    18/01/2017 02h00

    Jean Nouvel é um homem pálido, quase um boneco de cera que se veste todo de preto. Mas ele não tem medo de derreter. Nos últimos anos, esse francês que é um dos arquitetos mais famosos do mundo não tirou a cara do sol.

    Suas novas construções se espalham por cidades de clima quente, quando não tórrido. Nouvel está construindo um hotel de luxo em São Paulo, um prédio de apartamentos em Miami e inaugura no fim do ano a que talvez seja sua obra mais faraônica -a filial do Louvre em Abu Dhabi.

    Uma espécie de tenda armada no deserto rodeada pela água azul-turquesa do golfo Pérsico, a filial do museu parisiense na capital dos Emirados Árabes Unidos será o primeiro de uma série de projetos grandiosos a ganhar vida na ilha de Saadiyat, um delírio urbanístico que se desenha como o último suspiro da era dos "starchitects".

    AFP - 24.mai.2016
    Filial do Louvre em Abu Dhabi, projeto do arquiteto francês Jean Nouvel
    Filial do Louvre em Abu Dhabi, projeto do arquiteto francês Jean Nouvel

    Na crista da onda da bonança dos petrodólares há uma década, arquitetos como ele, Norman Foster, Zaha Hadid e Frank Gehry foram convocados para ver quem faria ali o desenho mais espalhafatoso.

    Enquanto a fonte financeira secou com a crise econômica e obras como o Guggenheim árabe, de Gehry, sofreram com escândalos de abusos de direitos trabalhistas, Nouvel não desistiu e será o primeiro deles a cristalizar um projeto que se pretende diáfano como uma miragem.

    O grande trunfo do novo Louvre, que custou R$ 2 bilhões e a vida de pelo menos um operário, é a imensa cobertura translúcida, que filtra a luz solar, transformando o dia lá fora em tempestade de raios luminosos do lado de dentro das galerias.

    Essa visão fantástica é realçada pelo espelho d'água natural. Barreiras em torno do canteiro de obras acabam de ser removidas, permitindo o avanço do mar que agora lambe as paredes brancas do museu, quase uma pérola ostentada pelos sultões.

    "Os países da região vivem uma era de ouro agora, então é normal que eles queiram prédios grandiosos", diz Nouvel, que se sentou para falar à Folha em Miami, onde lançava outro edifício de luxo. "Todos os grandes países e grandes cidades do mundo viveram suas eras de ouro e fizeram coisas extraordinárias."

    Nouvel vem seguindo o ouro. Após flertar com obras de habitação social na década de 1980, o vencedor em 2008 do Pritzker, maior prêmio mundial da arquitetura, foi se firmando no plano global com obras espetaculares, talhadas para milionários.

    Seu sucesso estrondoso joga luz sobre como a inovação arquitetônica depende cada vez mais das grandes fortunas, o lado mais sombrio da chamada arquitetura de autor.

    O hotel que constrói em São Paulo, por exemplo, terá um "caviar lounge". Em Nova York, outra torre que ergue perto do MoMA tem apartamentos de R$ 226 milhões à venda, enquanto a obra de Miami já desponta como um oásis envidraçado à beira-mar.

    HEDONISMO
    "Não acredito que a arquitetura hoje esteja ligada ao luxo ou ao não luxo", diz Nouvel. "O campo da arquitetura toca todos os níveis sociais, mas esquecemos que uma das principais características dele é reforçar o prazer de viver. Esses projetos são todos ancorados no hedonismo."

    Mas cada lugar, na visão de Nouvel, sente prazer de um modo distinto. Ele nega que tenha se rendido à estratégia do espetáculo vazio e diz que cada construção reflete o local onde está implantada.

    Sua torre paulistana, no meio das árvores do terreno do antigo hospital Matarazzo, na Bela Vista, está inspirada no entorno tropical. "É um prédio que nasce daquele espaço", afirma. "Dá a impressão de emergir de um bosque, onde tudo é feito de madeira."

    Em Miami, seu condomínio é transparente como a água do mar em volta. Mas, ao contrário do Louvre, Nouvel ali tenta debelar o problema da alta do nível do Atlântico que ameaça as construções históricas do balneário americano ao construir o térreo do prédio mais de três metros acima da areia da praia.

    Nesse ponto, a forma dramática da construção também assume uma função real, calcada na sustentabilidade. Em sintonia com uma discussão levada a cabo pela última Bienal de Arquitetura de Veneza, que debateu a ideia de preservar formas ousadas na arquitetura mesmo diante da demanda por projetos mais funcionais e ecológicos, Nouvel diz buscar um equilíbrio.

    "Em nome da sustentabilidade, muitas coisas são feitas hoje e demolidas amanhã porque partem de visões normativas ou são consequências diretas do marketing", diz o arquiteto. "A arquitetura pode sempre se preocupar com a forma dos prédios, mas não pode começar com a forma. Ela surge das restrições, não do desejo e dos caprichos."

    O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite da Art Basel Miami.

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