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    Herdeiro de Hilda Hilst localiza entrevista inédita de 1978; ouça

    MAURÍCIO MEIRELES
    DE SÃO PAULO

    23/01/2017 02h00

    Reprodução
    A escritora Hilda Hilst faz gesto com o dedo. [FSP-Ilustrada-16.04.97]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA***
    Hilda Hilst na juventude; escritora chamava a atenção por fugir aos padrões da época

    A voz de Hilda Hilst (1930-2004) estava perdida logo ali, no meio das vozes dos fantasmas –gravações que a escritora fazia de madrugada, pedindo algum contato da outra dimensão (há quem jure que, em uma delas, dá para ouvir uma alma penada dizendo "Hildinhaaa...").

    A maior parte dos arquivos de áudio guardados na Casa do Sol, sítio em Campinas onde a autora vivia, é dessas "conversas" com espíritos –mas não é que lá no meio havia uma entrevista inédita da escritora? Agora é a voz grave de Hilst que parece vir de outra dimensão.

    A descoberta foi feita durante a pesquisa para documentário de Gabriela Greeb sobre a escritora –previsto para setembro– e entregue a Daniel Fuentes, herdeiro da autora. A fita, gravada em 1978, é uma entrevista feita pelo artista José Luis Mora Fuentes, pai de Daniel e melhor amigo de Hilst.

    A descoberta veio a calhar, porque o herdeiro prepara uma caixa sobre a amizade do pai com Hilst, para enviar aos assinantes de um clube que criou, para os quais periodicamente manda preciosidades deixadas pela escritora.

    Talvez por falar a um interlocutor tão íntimo, a entrevista não traz Hilda Hilst encenando alguma excentricidade. A autora fala da obsessão pela imagem do pai, a mudança para a Casa do Sol, a busca de uma linguagem própria, entre outros assuntos. A seguir, uma versão editada da conversa dos dois.

    Ouça trecho da entrevista de 1978:

    Ouça trecho da entrevista de 1978

    *

    Os rostos do escritor

    Essa coisa de entrevista fica uma coisa muito difícil. Todos os rostos que [o escritor] se colocou, todos os rostos que possa ter, ele já traduziu escrevendo. Ele nunca dirá [nada] tão bem quanto na sua obra. Numa entrevista, querem saber o que exatamente?

    Penso assim: vou mostrando todos os rostos passíveis de terem vida, se dizerem e terem realidade -ao fazer isso, procuro me aproximar do rosto de todos os outros. Mas são sempre os mil rostos, as mil caras desse que escreve.

    A esquizofrenia do pai

    É sempre difícil falar no que realmente fez você escrever. Você não sabe dizer o que fez que você irrompesse como escritor. Mas tenho uma certeza dentro de mim: uma grande motivação foi todo o desejo de sentir, ver, tocar e pretender me aproximar desse homem que foi meu pai.

    A vida toda ouvi falar dele sem realmente poder vê-lo, porque meu pai adoeceu quando eu tinha três anos. Só o conheci aos 16, mas já muitíssimo doente, esquizofrênico, paranoico, num sanatório. Vi aquele rosto que eu conhecia das fotografias.

    [Havia um amigo dele] que dizia para mim coisas impressionantes: que meu pai foi a cabeça mais lúcida que ele havia conhecido.

    A loucura do pai

    Os relatos da minha mãe a respeito dele, tudo isso me impressionou muito desde menina. E vamos dizer que a personalidade forte do meu pai, e de uma certa maneira profundamente dominante, [era] sedutora para mim.

    Porque era uma figura sob a qual você podia ficar.

    Aquele homem foi me impressionando profundamente. E tudo isso da loucura, né? Um mundo todo fascinante, cheio de seduções. Acho que esse foi o toque, o que deu a explosão dentro de mim para começar a dizer.
    Para começar a me dizer.

    Desejo de proximidade

    A figura do meu pai ativou algo em mim [que me fazia desejar] ficar mais próxima dele. No final, não fiquei nada mais próxima. Quando o vi pela primeira vez, ele já não era aquele homem de quem eu tinha recebido notícias. Era uma segunda pessoa. Um homem absolutamente em ruínas, magérrimo, uma figura tristíssima e terrível, trágica e tudo o mais.

    Foi muito importante mesmo o que se disse do meu pai, o que ouvi dele mesmo, o que pude pressentir, o que amei e o que não quis ver -como isso de ele ser dominador.

    Olhar de opressor

    Me impressionou muito quando mostrei uma foto dele para minha amiga Rose Marie Muraro [1930-2014]. Ela disse: "Meu Deus! Que olho horrível! Que olho de opressor!" Na hora, fiquei muito chocada, porque nunca tinha visto isso nele. Mas não é que eu não tivesse visto. É claro que eu sabia que meu pai, tendo vivido na época em que viveu, tinha todos os componentes de um machista.

    Tenho impressão de que procurei esse rosto [do pai]... Em todas as delicadezas, em todas as violências, em todas as pessoas que amei. Procurei a vida inteira verbalizar esse sentir pai dentro de mim. É a coisa mais viva, a figura desse homem dentro de mim. Apesar de nunca estar perto, ele é a pessoa que ficou mais perto.

    Sala de Memória Casa do Sol/Acervo Instituto Hilda Hilst/Divulgação
    O artista José Luiz Mora Fuentes e Hilda Hilst na Casa do Sol, em fotografia sem data
    O artista José Luiz Mora Fuentes e Hilda Hilst na Casa do Sol, em fotografia sem data

    A mudança para a Casa do Sol

    Talvez tenha sido um processo inconsciente. Quando eu morava em São Paulo, escrevia poesia; mas havia demasiada proximidade dos outros em mim. Talvez eu tenha vindo morar no campo para que outra vez se fizesse a explosão de magia causada pela ausência do pai.

    Posso ter repetido isso sem ter esquematizado, para ver se conseguia dizer melhor dos outros estando distante.

    A solidão

    Acho que deu certo. Aqui foi onde fiz meu trabalho com mais intensidade.

    As pessoas confundem tudo, querem respostas arrumadas, quando não há respostas arrumadas. O que há é uma vontade de a descoberta ficar cada vez mais vital, mais importante maior.

    E daí é preciso que você tenha uma solidão bastante acentuada. Que você repense diariamente esse seu estar no mundo, seu existir.

    Estou e não estou em solidão. Há a possibilidade de eu conversar agudamente com algumas partes minhas que eu ainda desconhecia. E tanto desconhecia que foi só aqui que pude trabalhar a linguagem, sentir o veículo da linguagem com mais vida. Havia uma possibilidade maior de grandes confissões nesse estar só.

    Por que Hilda se isolou

    A vida que eu tinha em São Paulo parecia bastante divertida. Eu me preocupava com as aparências, tinha amigos bastante divertidos, mas sentia que não ia poder trabalhar se continuasse naquele processo.

    Tentei várias experiências para me aproximar de um dizer criativo. Através do amor, fui tentando descobrir formas de dizer. Fui procurando em cada pessoa e em cada objeto amados um rosto primeiro, um pai primeiro, um detalhe qualquer que me aproximasse continuamente desse homem. Foi uma verdadeira obsessão.

    Níkos Kazantzákis

    Um dia eu li "Cartas a El Greco", de Níkos Kazantzákis. Esse homem entrou numa luta acentuada entre a carne e o espírito. Eu me aproximei da figura do Kazantzákis, ele tinha uma coisa do meu pai, um olhar, uma magreza em que já se pressentia uma lucidez-loucura. Foi a partir desse livro que resolvi vir para cá [a Casa do Sol].

    Busca pela linguagem

    Comecei a pensar que as coisas convencionais, tudo que eu havia visto, participado, tudo aquilo não era o verdadeiro rosto das pessoas nem o meu verdadeiro rosto. Senti que poderia dizer de outra maneira, porque eu era essa outra maneira. Eu era uma maneira de sentir que me diferenciava das coisas que eu já tinha visto.

    Vontade de dizer

    Tinha uma vontade enorme de falar. E sabia que podia fazer do meu próprio jeito. Toda a minha respiração era diferente. Havia um contato com as coisas nítido e singular.

    Tudo isso eu sentia pelas agressões que eu recebia desde muito jovem, pelas coisas que eu dizia. Houve conflitos muito grandes com os outros na minha adolescência. Porque havia uma vontade de dizer tudo, agarrar o outro e forçá-lo também a dizer tudo, para que ele ficasse perto. Tudo isso espantava e chocava. Não era natural fazer coisas assim, pedir ao outro mais do que pudesse convencionalmente dar.

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