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    Análise

    Avessa a imposições, Emmanuelle Riva preferia papéis sem glamour

    CÁSSIO STARLING CARLOS
    CRÍTICO DA FOLHA

    29/01/2017 14h40

    O cinema, essa indestrutível memória do mundo, preservou de Emmanuelle Riva dois instantes essenciais: o da atriz nomeada simplesmente como Ela em "Hiroshima, Meu Amor" (1959), de Alain Resnais, e o da senhora cuja vida se apaga após sofrer um AVC em "Amor" (2012), de Michael Haneke.

    Com seu primeiro trabalho no cinema, a atriz francesa que morreu na última sexta (27), em decorrência de câncer, aos 89 anos, em Paris, hipnotizou nosso imaginário com sua voz transparente, capaz de dizer o texto denso do roteiro de Marguerite Duras com uma profundidade natural bem distante da ideia comum de interpretação.

    No papel da Anne, de "Amor", Riva nos confrontou com a dor da vida, com os tormentos da velhice e tornou verdadeiramente humano, porque trágico, o último ato de um relacionamento afetuoso.

    Valery Hache/AFP
    (FILES) This file photo taken on May 20, 2013 shows French actress Emmanuelle Riva posing as she arrives for the screening of the film "Hiroshima mon Amour" presented in Cannes Classics at the 66th edition of the Cannes Film Festival in Cannes. Riva died on January 27, 2017 at the age of 89. / AFP PHOTO / VALERY HACHE ORG XMIT: CAN3890
    A atriz Emmanuelle Riva durante exibição de "Hiroshima, Meu Amor" no Festival de Cannes, em 2013

    O desempenho foi reconhecido com o César e um punhado de prêmios da crítica mundo afora, inclusive no Brasil, e uma indicação ao Oscar em 2013, que a francesa perdeu para Jennifer Lawrence pelo esquecível "O Lado Bom da Vida".

    Nas cinco décadas entre um trabalho e outro o trajeto de Emmanuelle –pseudônimo que ela adotou no lugar do mais prosaico Paulette Germaine, escolhido por seus pais– quase desapareceu do radar. É como se a fulgurância de "Hiroshima, Meu Amor" projetasse uma sombra sobre tudo o que ela fez depois.

    "Não sei direito, mas por causa de Resnais tenho a impressão de que vou decepcionar as pessoas a partir de agora, pois ele me colocou nesse lugar tão alto. Ele me fez alcançar um apogeu, creio", ela pressentiu numa entrevista na apresentação do filme em Cannes, em 1959.

    A fragilidade de mulheres fortes, o olhar que combina expressividade e discrição e, sobretudo, a dicção capaz de sempre encontrar um modo inesperado de revelar emoções deram complexidade a personagens que poderiam resvalar em estereótipos.

    Dentre eles, destacam-se o da judia presa num campo de concentração em "Kapò: Uma História do Holocausto" (1960), de Gillo Pontecorvo, o da viúva atraída por um belo pároco no formidável "Léon Morin - O Padre" (1961), de Jean-Pierre Melville, e o de esposa burguesa refém dos valores de classe em "Thérèse Desqueyroux" (1962), de Georges Franju.

    Sua preferência por papéis nada glamorosos revela uma personalidade reservada, avessa às imposições feitas a atrizes com função de estrelas.

    O traço de temperamento tornou-se vantagem na maturidade, quando ela voltou a se associar com diretores de respeito, como Marco Bellocchio (em "Olhos na Boca", de 1982), Philippe Garrel (em "Liberté, la Nuit", de 1984) e Krzysztof Kieslowski (em A Liberdade É Azul", de 1993).

    Todos procuraram em Riva uma atriz sem efeitos e reencontraram o mito que ela constituiu ao dar corpo e voz a uma mulher que é também todas.

    Stringer/AFP
    (FILES) This file photo taken in May 1970 shows a portrait of French actress Emmanuelle Riva. Riva died on January 27, 2017 at the age of 89. / AFP PHOTO / STRINGER ORG XMIT: RIV70
    Retrato da atriz Emmanuelle Riva em 1970
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