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    Análise

    Programação cultural, obras e novos projetos vão ter de esperar

    CARLOS AUGUSTO CALIL
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    03/02/2017 02h16

    A prefeitura divulgou os índices de contingenciamento do Orçamento municipal em 2017. A imprensa repercutiu valores significativos (R$ 2,65 bilhões) de possíveis cortes na Educação e na Saúde.

    A linguagem administrativa é cifrada: contingenciamento significa indisponibilidade momentânea e não acarreta necessariamente corte futuro. Mas fica o alerta: se a arrecadação não cumprir sua meta, os cortes virão.

    Essa modalidade perversa foi criada, salvo engano, pela ministra Zélia Cardoso de Mello, no início do governo Collor. A economia do país estava um caos, a inflação batia em 80% ao mês, o país em polvorosa, o governo que chegava sinalizou um controle radical pelo "regime de caixa".

    Nele se abandona o Orçamento como peça de execução orçamentária, substituída pela chave do Tesouro. Ficou assim instituída desde aquela época a figura do todo poderoso ministro (ou secretário) da Fazenda, que é de fato mais ministro e secretário do que seus colegas, pois tem o poder de reter –e de liberar em conta-gotas– os recursos previstos no Orçamento.

    Renato Machado/Renato Machado/Editoria de Arte/Folhapress
    Renato Machado DE 03.Fev.2017

    Para que serve, então, o Orçamento público no Brasil? Entre nós, Orçamento é autorizativo, isto é, só poderão ser gastos os valores constantes no Orçamento; não significa que o serão necessariamente. Na Europa, predomina o Orçamento impositivo: o que foi aprovado está liberado para ser gasto.

    Essa situação de fato coloca o administrador público brasileiro numa ficção gótica. Para elaborar o Orçamento de sua secretaria ou ministério, ele recolhe as demandas setoriais por recursos e as compatibiliza com os limites orçamentários; administra o conflito interno entre as reivindicações e procura manter o nível histórico de distribuição.

    Por isso, o Orçamento é sempre conservador, pois repete a série histórica da execução orçamentária. Eis aí uma primeira explicação do baixo nível de investimento do governo em geral.

    Em seguida, o Orçamento segue para a disputa entre as diversas secretarias e ministérios, arbitrada pela Fazenda, que corta para acomodar os nem sempre convergentes interesses. O Executivo dá a palavra final, e a "peça" segue ao Parlamento.

    Lá, sofre nova interferência, e recursos podem migrar de rubricas entre secretarias ou ministérios até serem aprovados após negociação com deputados ou vereadores.

    O esforço enorme de consolidar uma demanda por recursos parece chegar ao fim. Mas não; esse Orçamento aprovado é apenas autorizativo: o que será executado depende de escapar do congelamento da Fazenda.

    ENTRAVES

    O gasto no poder público é sempre muito difícil, pois tem de superar enormes entraves jurídicos e rituais administrativos morosos, que muitas vezes contrariam o bom senso e o senso comum.

    É tão difícil gastar muito como gastar pouco, o que provoca um sentimento de impotência na máquina administrativa. Como planejar nessa situação?

    Ao longo do ano, à medida que a arrecadação se realiza, a Fazenda vai liberando gradualmente valores congelados do Orçamento. São premiados aqueles órgãos que foram capazes de gastar, apesar de tudo. Eles têm de estar preparados para a corrida contra o relógio, pois há um prazo curto para executar as despesas. É uma maratona no labirinto.

    CORRIDA DE OBSTÁCULOS

    O administrador experiente, que já foi pego nessa armadilha, sabe que, ao se aproximar o final do exercício, o governo remanejará recursos dos setores que não foram capazes de gastar para aqueles que se mostraram mais ágeis, e a eficiência acaba premiada. Nesse caso, os projetos têm de estar prontos, e o cipoal administrativo, já bastante desbastado para que o prazo, agora mais ainda mais exíguo, não impeça a realização dos projetos. O leitor já viu uma corrida de obstáculos?

    A modesta Secretaria Municipal de Cultura foi contemplada com 0,83% do Orçamento, proposto por Haddad, no valor de R$ 453,3 milhões anuais. Com o congelamento recente de 43,5% (R$ 197,4 milhões), a gestão Doria irá manter as despesas de pessoal, custeio e alguns contratos operacionais. O necessário para a Cultura respirar.

    Investimentos em programação, obras e novos projetos vão ter de esperar um aceno político ou um incerto patrocínio. Isso vale para toda a administração: Verde, Habitação, Esportes, Assistência Social. Aparentemente só a área de Transportes foi preservada, que já era prioridade na gestão anterior. O governo que entra tem de conviver no primeiro momento com as prioridades do que sai.

    Qual a mensagem que se lê nas entrelinhas? Será preciso produzir superavit para cumprir os novos compromissos (ampliação do subsídio ao transporte público, por exemplo) à custa de remanejamento orçamentário. E enquanto o cenário da arrecadação não estiver claro, e a herança administrativa, bem esquadrinhada, só dá para manter mesmo o balão de oxigênio.

    O quadro se repete em outras esferas. O Ministério da Cultura está à míngua; na secretaria de Estado da Cultura só se fala de cortes impostos pelo Palácio dos Bandeirantes.

    Nem sempre foi assim.

    Nos idos de 1935, a administração do prefeito Fábio Prado, ao mesmo tempo que criava o Departamento de Cultura e Recreação (equivalia à secretaria de hoje), destinava 10% do Orçamento municipal às suas atividades, que englobavam esportes, ação social, meio ambiente, turismo e artes. O titular era o escritor Mário de Andrade.

    Os filhos dos operários que frequentavam os parques públicos eram subnutridos. O departamento passou a distribuir um copo de leite aos "afilhados da Prefeitura". A medida vingou e foi mantida por Ademar de Barros e, anos adiante, por Paulo Maluf.

    Como se vê, em política nada se cria, tudo se apropria. Agora, o leite das crianças parece estar ameaçado com os cortes na Educação.

    Mário de Andrade, o primeiro secretário de Cultura da cidade, disse em um discurso: "Ainda não se percebeu em nossa terra que a cultura é tão necessária quanto o pão, e que uma fome consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem felicitou qualquer país". Será que vão faltar leite e pão em nossa cidade?

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