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    ANÁLISE

    Para Todorov, cerne da literatura não poderia estar na técnica

    MANUEL DA COSTA PINTO
    COLUNISTA DA FOLHA

    08/02/2017 02h20

    Seria uma pena se Todorov fosse lembrado apenas por suas últimas intervenções -seja como teórico de literatura, seja como intelectual. Não que seus livros e ensaios mais recentes, sobre leitura ou política, desmereçam o conjunto da obra -mas, vistos isoladamente, poderiam reduzi-la ao senso comum e à militância.

    Autor de importantes estudos de narratologia (disciplina que extrai o sentido da representação a partir da análise das estruturas intrínsecas e intertextuais de uma narrativa), Todorov foi um dos maiores divulgadores dos formalistas russos na Europa.

    Esses teóricos -Jakobson, Chklóvski, Tynianov, Propp- foram decisivos para o estruturalismo francês, do qual Todorov foi um dos representantes, ao lado de estrelas de primeira grandeza como Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva.

    Martin Bureau/AFP
    O filósofo Tzvetan Todorov, morto, aos 77, nesta terça
    O filósofo Tzvetan Todorov, morto, aos 77, nesta terça

    Com o refluxo da idade do ouro da teoria literária, Todorov passou a escrever, com frequência cada vez maior, ensaios sobre história e política contemporâneas.

    Em "A Conquista da América", por exemplo, ele aborda o descobrimento pelo contraste de relatos de indígenas, conquistadores e religiosos. E, em "Os Inimigos Íntimos da Democracia", coloca o pensamento ultraliberal contemporâneo no termo final de uma longa fileira de messianismos, que remonta aos jacobinos da Revolução Francesa e passa pelos comunistas.

    No campo propriamente literário, Todorov se desviou de suas investigações sobre as tipologias narrativas (que abrangiam tanto literatura fantástica quanto romances policiais) para polemizar sobre os efeitos do estruturalismo na recepção da literatura.

    Assim, no livro-manifesto "A Literatura em Perigo", ele criticou uma concepção de literatura em que "a obra impõe o advento de uma ordem em estado de ruptura com o existente, a afirmação de um reino que obedece a suas leis e lógicas próprias", com o decorrente exílio dos leitores.

    Bem entendido, Todorov não estava "renegando" seus pressupostos formalistas ou estruturalistas, mas preocupado com a assimilação hermética -pelos escritores- de uma reflexão metalinguística que colocara proezas técnicas no cerne da criação literária, o andaime à frente do cenário, em detrimento da representação do existente, do sentido crítico de toda ficção.

    Foi a deixa para que Todorov fosse usado como bandeira de um conservadorismo anti-intelectual, que deseja afastar da literatura qualquer complexidade em nome de um pensamento para o qual o mundo é transparente, com leis (e desigualdades) "naturalizadas", inquestionáveis -só restando à literatura se tornar mais um produto inofensivo do entretenimento.

    Esse, enfim, seria o verdadeiro perigo para a literatura e para o legado de um autor que soube buscar nela um sentido para a existência que, fora dela, apenas tateamos.

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