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    Festival de Berlim 2017

    Aprender a interpretar imagens é um ato político, diz João Moreira Salles

    GUILHERME GENESTRETI
    ENVIADO ESPECIAL A BERLIM

    12/02/2017 20h02

    Divulgação
    Cena de 'No Intenso Agora', novo filme de João Moreira Salles que estreia no Festival de Berlim
    Cena de 'No Intenso Agora', novo filme de João Moreira Salles que estreia no Festival de Berlim

    Um dos momentos mais representativos de "No Intenso Agora", documentário de João Moreira Salles que estreou mundialmente no Festival de Berlim, retrata o líder estudantil Daniel Cohn-Bendit aceitando uma viagem paga por uma revista de variedades poucos dias após ele ter incendiado as ruas de Paris no levante que ficou conhecido como Maio de 1968.

    O que era espontaneidade insurgida contra um modelo burguês de sociedade acabara cooptado, deglutido pelo próprio sistema contra o qual os universitários franceses lutavam.

    A partir desse trecho, é inevitável fazer uma alusão com o que houve no Brasil a partir dos protestos de junho de 2013, que de passaram a comprar uma agenda conservadora.

    "Eu olhava para aquelas manifestações no Brasil e achava tudo maravilhoso, mas não entendia a agenda e ficava melancólico: como toda a paixão, pensava que aquilo ia acabar", diz o documentarista à Folha. Ele editava o material enquanto as ruas das capitais brasileiras ardiam.

    Em 1968, como mostra o filme, os franceses viram a mão de ferro do presidente De Gaulle esmagar as demandas da insurgência juvenil, mas pautas difusas e laterais vingaram: emancipação feminina, modernização dos costumes etc.

    "Imagino que algo semelhante pode acontecer no Brasil", crê o documentarista. "O que os manifestantes queriam não se concretizou: ainda temos o mesmo Congresso Nacional contra o qual saíram às ruas. Mas será que a intensidade e o rigor da Lava Jato não seriam uma resposta à reivindicação por decência política daqueles protestos?"

    Mas "No Intenso Agora" não se pretende uma obra enciclopédica sobre os protestos de Maio de 1968; eles são apenas o mais longo dos quatro eixos que guiam o documentário.

    Completam o documentário imagens anônimas da invasão soviética a Praga, o enterro do estudante Edson Luis no Rio (ambos no turbulento 1968), e os registros feitos pela mãe do cineasta na China maoísta em 1966.

    Têm em comum o fato de que foram captadas por terceiros e ganharam sentido e organicidade na ilha de edição, onde Moreira Salles contou com os préstimos de Eduardo Escorel e Laís Lifschitz.

    O último dos eixos temáticos -a viagem à China durante a Revolução Cultural-foi o gatilho para o projeto, segundo o diretor, que descobriu as imagens enquanto trabalhava em "Santiago" (2007).

    "No Intenso Agora" é, como resume Moreira Salles, uma investigação sobre a natureza da imagem -o que se depreende dela, quem a realiza, como é possível interpretá-la.

    "Sou cético quanto à capacidade que o cinema tem de alterar o mundo, mas tenho uma profunda fé nos filmes que têm a missão de mudar o cinema. Acho que este é o papel do cineasta: não tratar as imagens de maneira inocente. Aprender a vê-las é um ato político."

    A interpretação do que enche a tela aparece, por exemplo, em registros do Maio de 68. Como narra Moreira Salles durante a obra, quando aparecem negros nos vídeos, eles estão sempre nas beiradas do quadro, sempre discretos.

    "O que aquilo me diz? Me diz que aquela foi uma revolução de garotos burgueses e que não incorporou populações marginalizadas."

    "No Intenso Agora" é uma das 12 obras brasileiras que estão na programação do Festival de Berlim -um recorde.

    O jornalista GUILHERME GENESTRETI se hospeda a convite do Festival de Berlim

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