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    Livro de Roberto Bolaño é lançado no Brasil, após mais de 30 anos na gaveta

    SYLVIA COLOMBO
    DE BUENOS AIRES

    14/02/2017 02h00

    Lese Pierre/Folhapress
    Ilustração do escritor Roberto Bolano
    Ilustração do escritor Roberto Bolano

    Em meados da década de 1980, o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) enviava de Blanes —balneário na Catalunha onde ficaria até o fim da vida, depois de anos radicado no México— cartas aos amigos, contando como vinha sofrendo para pôr um ponto final em "O Espírito da Ficção Científica", romance que sai agora no Brasil.

    Nelas, dizia: "Espero terminar antes do fim do ano, ainda que com isso eu quebre o meu pulso" ou "esse romance de merda está me infernizando, quero terminá-la logo, e nessa tarefa me transformei num Hulk, num homem verde, algo desastroso".

    Por fim, noutra missiva, também sobre quão ansioso estava por terminá-la, implorou: "São Philip K. Dick, tenha piedade de mim!", fazendo referência ao autor americano (1928-1982) de romances de ficção científica.

    As cartas dizem muito sobre o valor que essa obra tinha para o autor, hoje tido como um dos principais da segunda metade do século 20 na literatura hispano-americana.

    "O Espírito da Ficção Científica", cuja trama conta a história de dois jovens escritores que transitam pela vida boêmia e literária da Cidade do México, foi encontrado em meio a seus inéditos de forma manuscrita, revisada e sem correções, como uma versão final, em três cadernos de anotações.

    Por outro lado, as cartas jogam lenha numa fogueira acesa recentemente, quando o volume foi de fato publicado, em 2016 —13 anos após a morte do autor.

    Críticos literários, imprensa especializada e seu ex-editor e amigo Jorge Herralde levantaram a seguinte questão:

    Se Bolaño tinha tamanha obsessão por esse romance e a obra foi encontrada em seus arquivos como encerrada –assinada e com a data de término (1984)–, por que só agora chega às livrarias? Será que Bolaño, ao final, não tinha ficado satisfeito com o resultado e havia preferido manter o livro inédito?

    Herralde chegou a sugerir que a viúva estaria se aproveitando do legado de Bolaño, lançando textos rejeitados pelo autor em vida apenas para fazer dinheiro.

    A controvérsia foi o grande tema da última Feira do Livro de Guadalajara, em novembro, no México, onde se realizou o lançamento oficial do livro, com a presença da viúva e herdeira, Carolina López, e dos filhos do autor.

    "Este livro não é uma montagem, é um livro terminado. Não sei quando ele iria publicar. É possível que fosse publicando o que estivesse produzindo no momento, mas tenho certeza de que estaria contente de vê-lo publicado agora", respondeu López, irritada, quando questionada por jornalistas sobre a pertinência da publicação tardia.

    O romance também é a primeira obra inédita do autor a sair por sua nova editora, a Alfaguara. Antes, todos os seus livros tinham sido publicados pela Anagrama, cujo dono é, justamente, Jorge Herralde, editor e amigo de Bolaño com quem López havia entrado em conflito desde a morte do autor.

    O debate logo deixou o terreno literário e passou para a esfera pessoal. Como confirmam amigos, o escritor havia se separado de López e passou os últimos anos com outra companheira. Herralde diz que a viúva o havia colocado numa "lista negra" porque ele e alguns amigos faziam parte do grupo de pessoas íntimas a quem Bolaño apresentava Carmen Pérez de Vega como sua namorada.

    Foi Pérez de Vega quem acompanhou o autor de "Os Detetives Selvagens" no final da doença hepática de que sofria desde 1992 e quem o levou ao hospital onde, após dez dias esperando por um transplante de fígado que não veio, ele morreu, aos 50 anos.

    Em entrevista à Folha, em Guadalajara, o agente literário Andrew Wylie, que representa o espólio literário de Bolaño, considera a disputa "um caso encerrado". "Ainda que ele tenha vivido separado de López nos últimos anos, ele a elegeu como a pessoa que cuidaria de seu legado após sua morte. Portanto, o que ela disser que deve ser publicado será publicado."

    E acrescentou: "A obra de um autor é como a propriedade de uma pessoa. O sujeito trabalha, compra uma casa e cria ali sua família. Quando ele morre, a casa pertence à família. Não interessa que depois apareça um vizinho e diga que, porque beijou uma vez o proprietário, ele tenha algum direito sobre a herança. Se ele designou López como herdeira, não quero saber de suas outras relações".

    Na verdade, o que a celeuma ilustra é também uma das particularidades da obra deste autor, que por seu estilo já foi comparado ao argentino Julio Cortázar (1914-1984).

    Bolaño começou a escrever aos 17, mas começou a publicar apenas a partir dos 43.

    Filho de uma família de classe média baixa, sempre sobreviveu à custa de trabalhos modestos: lavando pratos ou sendo garçom, coletor de lixo e até guarda noturno.

    Fez uma viagem de ida e volta do México ao Chile pedindo carona e fazendo alguns trechos em caminhões. Seu escritório de trabalho na Espanha não possuía calefação e ele ainda assim atravessava as madrugadas de inverno escrevendo ali.

    Apenas durante seus últimos sete anos teve a vida de um escritor famoso, convidado com luxos a viajar a festivais e palestras.

    Morreu em 2003, o que significa que já acumula mais tempo famoso como escritor póstumo. E, detalhe importante, o arquivo que deixou inédito corresponde a mais de 14 mil páginas.

    O Espírito Da Ficção Científica
    Roberto Bolaño
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    Por conta disso, alguns defendem que se respeite essa característica da obra de Bolaño. Um deles é seu amigo, o também escritor Bruno Montané: "É tempo de deixar de discutir sobre a poética do inacabado quando se fala de Bolaño. Temos que reconhecer que seus escritos estão do jeito que estão."

    Já o crítico mexicano Christopher Domínguez Michael crê que a discussão serve também para lembrar que sempre houve um aspecto comercial por trás da produção literária e, portanto, não se deveria crucificar a viúva por estar lançando seus inéditos.

    "Não podemos ignorar que, ao menos desde os tempos de Balzac, o romance está ligado ao comércio."

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