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    opinião

    Matemática da segregação racial nos enche de vergonha

    MARCELO GLEISER
    DE ESPECIAL PARA A FOLHA

    15/02/2017 02h04

    Para ir ao espaço precisamos de matemática. Muita matemática. Quando olhamos, em filme ou ao vivo, com aquela veneração boquiaberta, para uma plataforma de lançamento de foguetes, é fácil esquecer da quantidade absurda de trabalho para transformar projeto no papel em realidade.

    Engenharia, matemática, física, química, ciências da computação, está tudo lá, esperando pela decolagem. Agora, viaje até 1961, quando os Estados Unidos estavam perdendo feio da União Soviética na corrida espacial.

    O drama começou com o lançamento da diminuta sonda Sputnik em 4/10/1957. A esfera metálica de 58 cm de diâmetro e 84 kg, um ponto de luz visível no céu noturno, mudou o curso da história. Em menos de um mês, os soviéticos lançaram a Sputnik 2, com a cadela Laika a bordo. Chegar à Lua e pôr humanos em órbita era o passo seguinte.

    A competição entre as duas superpotências explodiu. No clímax da Guerra Fria, o espaço era a nova fronteira de domínio. As tensões aumentaram quando o cosmonauta Yuri Gagarin completou uma órbita em torno da Terra em 12/4/1961. Pela primeira vez na história, descendentes de primatas saíam do chão e das árvores e lançavam-se ao espaço.

    É aqui que começa o filme "Estrelas Além do Tempo", justamente nomeado ao Oscar 2017. A Nasa havia sido fundada três anos antes, em 1958. A pressão política era enorme; o orgulho nacional estava em jogo. Além disso, quem poderia saber o que os soviéticos iriam pôr "lá em cima"? O filme retrata bem a paranoia da época, o medo geral de um apocalipse nuclear.

    Nasa/Divulgação
    A engenheira Mary Jackson em foto da Nasa, no filme ela é interpretada por Janelle Monáe
    A engenheira Mary Jackson em foto da Nasa, no filme ela é interpretada por Janelle Monáe

    Mas a narrativa gira em torno da ciência realizada por três mulheres negras, todas geniais no que fazem, todas lutando contra o preconceito acirrado. No filme, a Nasa ainda era segregada em 1961.

    A aspirante a engenheira Mary Jakcson (1921-2005), interpretada por Janelle Monáe, aponta uma falha nos ladrilhos de proteção térmica de um satélite experimental.

    Para ir ao banheiro no Centro de Pesquisa de Langley, a brilhante técnica de cálculo Katherine Goble Johnson (1918-), com performance marcante de Taraji Henson, tinha que cruzar quase um quilômetro de salto alto, sob chuva ou sol. Capaz de realizar cálculos incrivelmente complexos, a primeira mulher "de cor" do time não podia nem beber café do mesmo bule que seus colegas.

    Na época, os cálculos de decolagem, trajetória e reentrada na atmosfera eram feitos à mão! E os outros engenheiros, todos homens, todos brancos, morriam de inveja das aptidões de Goble.

    É bom ver longas equações matemáticas fluindo em enormes quadros negros num filme que vem enchendo os cinemas. Confesso que não conhecia essa história. Toda criança, especialmente as meninas, deveria ver esse filme. Deveria passar nas escolas, nos clubes, nas igrejas.

    A terceira do grupo, Dorothy Vaughan (1910-2008) –com mais uma performance incrível, de Octavia Spencer–, tentou em vão ser promovida a supervisora, um trabalho que na prática já fazia.

    Vaughan conseguiu mudar as coisas quando a Nasa comprou um computador IBM que ninguém, aparentemente, sabia programar.

    Tendo jeito para mecânica (aprendida com o pai), Dorothy faz o monstro funcionar (na época, computadores eram cheios de partes móveis: alavancas, fitas magnéticas, fios conectores, uma confusão eletromecânica).

    Munida de um livro sobre a linguagem de programação Fortran retirado numa biblioteca, aprende a programar sozinha. Com isso, ganha o respeito de todos e é finalmente promovida a supervisora do departamento de programação, trazendo outras meninas "de cor" com ela.

    A narrativa conecta a história das três, alterando os fatos para construir uma mensagem efetiva.

    Na realidade, a Nasa não era segregada em 1958. Dorothy Vaughan foi promovida à supervisora de computação em 1949. Mary Jackson concluiu seu curso em 1958 e foi a primeira engenheira negra da Nasa. Katherine Johnson fazia parte do grupo de cálculo espacial desde 1953.

    Seu chefe, no filme Al Harrison (Kevin Costner), era Robert Gilruth. Mas o lendário astronauta John Glenn de fato pediu que ela confirmasse os cálculos de sua trajetória de voo realizados pelo computador da IBM.

    O filme celebra o espírito humano, o poder de determinação individual e a necessidade de um país trabalhar junto para superar desafios sociais e políticos, inclusive as diferenças raciais e culturais. A América segregada que vemos no filme envergonha, um eco sombrio de um passado ainda tão presente, lá e cá.

    Num momento histórico em que as instituições democráticas dos EUA estão sendo postas em xeque, o filme mostra que o sucesso de um país depende de sua união; que o que define o sucesso de uma nação não são segregação e violência, mas abertura e inclusão de todos.

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