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    Festival de Berlim 2017

    'Temos que lutar contra esse governo ilegítimo', diz Marcelo Gomes em Berlim

    GUILHERME GENESTRETI
    ENVIADO ESPECIAL A BERLIM

    16/02/2017 11h54

    "Aqui quem fala é um homem decapitado, mártir de uma revolta fracassada que é estudada em todas as escolas do Brasil." "Joaquim", único filme brasileiro na competição do Festival de Berlim, começa com uma narração funesta, à lá "Memórias Póstumas de Brás Cubas", enquanto uma cabeça surge fincada em praça pública.

    O filme de Marcelo Gomes teve a sua sessão para a imprensa no início da tarde desta quinta (16). O longa é uma ficção histórica sobre o amadurecimento político de Tiradentes (Julio Machado).

    "O que me interessava é imaginar como ele mudou o paradigma dele, de soldado da Coroa virou um rebelde, vivendo numa terra de cada um por si", disse o diretor na coletiva de imprensa seguinte à exibição.

    O cineasta aproveitou a oportunidade para criticar o governo Temer. "Nos últimos 14 anos [governos Lula e Dilma], houve uma mudança radical de paradigmas", disse Gomes. "Mas estamos num momento muito absurdo de nossa política, com retrocessos. Temos que lutar contra esse governo ilegítimo."

    O diretor também leu um manifesto assinado por cineastas brasileiros e estrangeiros em Berlim (leia abaixo), para gerar um "alerta sobre a comunidade internacional" sobre a situação política.

    "Estamos vivendo uma grave crise democrática no Brasil", começa a carta que enuncia que sob "esse governo ilegítimo", a produção autoral está sob risco.

    O documento também exalta o recorde de 12 filmes nacionais no festival alemão e a atuação da Ancine nos últimos anos. "Pedimos que apoiem a nossa luta. Acreditamos nessas políticas que podem nos levar adiante." A leitura da carta foi aplaudida pelos jornalistas.

    TIRADENTES

    A trama de "Joaquim" não incorre na cilada de construir uma hagiografia sobre o mártir da Inconfidência Mineira. Embora escancare algum idealismo, retrata o alferes como um dono de escravos decidido a ficar rico com o ouro que encontrar nas Minas Gerais.

    Gomes retrata o caldeirão cultural do Brasil colônia: escravos revoltos, índios despojados que mendigam por comida e, principalmente, burocratas portugueses dilapidadores.

    A todo momento, o que escancara é como os vícios da colônia ainda estão impregnados na sociedade brasileira: funcionários da Coroa que cobram subornos cotidianos, a cor da pele como um requisito para a ascensão social etc.

    O filme centra na figura de um poeta -uma epítome dos literatos do arcadismo que se engajaram na Inconfidência-sua crítica a uma elite intelectual acomodada.

    "À medida que eu lia livros sobre o período colonial brasileiro, e como eram as relações sociais das pessoas, mais eu entendia o Brasil de hoje", disse Gomes, de "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005).

    Com poucos documentos históricos a respeito daquele momento histórico, o cineasta pernambucano diz que se permitiu imaginar o que teria desencadeado o amadurecimento político de Joaquim, o Tiradentes.

    A luta de negros, reunidos em um quilombo, terá um papel importante. "Foram os africanos, na condição de escravos, que trouxeram ao Brasil a ideia de revolta, de resistência", segundo Gomes.

    Numa das cenas que talvez seja a mais emblemática: um escravo negro se junta na cantoria de um índio despossuído. "Aquele hip hop talvez seja o nosso momento de conjunção como Brasil", comentou o diretor.

    Na ocasião, um jornalista português perguntou se havia alguma referência ao ex-presidente Lula na figura do sacrificado Tiradentes. O diretor riu: "Quando o filme acaba, ele pertence ao espectador. Não pensei nisso, mas é maravilhoso."

    Num festival politizado como a Berlinale, a luta anticolonialista de "Joaquim" pode ser um trunfo para essa coprodução Brasil-Portugal.

    Contudo, as referências a um fato local, que estão bem fincadas na historiografia brasileira mas pouco são conhecidas fora do país, podem ser uma desvantagem à conquista do Urso de Ouro. Os premiados serão anunciados na noite de sábado (18).

    *

    LEIA A ÍNTEGRA DA CARTA

    Para a comunidade cinematográfica internacional

    Estamos vivendo uma grave crise democrática no Brasil. Em quase um ano sob esse governo ilegítimo, direitos da educação, saúde, trabalhistas foram duramente atingidos. Junto com todos os outros setores, o audiovisual brasileiro, especialmente o autoral, corre sério risco de acabar. A diretoria da ANCINE (Agência nacional de cinema) está agora em processo de substituição de dois de seus quatro
    diretores, que serão anunciados pelo ministério do atual governo.

    O Brasil é formado por uma diversidade étnica-racial-cultural-religiosa e de gênero gigantesca. E a consciência dessa pluralidade tem se mostrado peça-chave na hora de planejar os programas educacionais, econômicos, culturais e de saúde do nosso país.

    Na política do audiovisual brasileiro, não foi diferente. Nos últimos anos, a Ancine tem direcionado suas diretrizes observando com atenção esses muitos Brasis. Ampliou o alcance dos mecanismos de fomento, que hoje atingem segmentos e formatos dos mais diversos, do cinema autoral ao videogame; das séries de TV aos filmes com perfil comercial: do desenvolvimento de roteiro à distribuição.

    O resultado é visível. O ano de 2017 começou com a expressiva presença de filmes brasileiros nos três dos principais festivais internacionais, totalizando 27 participações em Sundance, Rotterdam e Berlim. Não chegamos a esse patamar histórico sem planejamento, continuidade e diálogo entre Ancine e a classe realizadora, principalmente por meio de duas ações de fomento: a criação de uma lei que obriga os canais de tv a cabo a exibirem 3h30 de programação brasileira e a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, que investe em várias linhas, em todos os tipos de audiovisual em qualquer fase de produção.

    Entre as políticas do Fundo Setorial, gostaríamos de destacar, em especial, as políticas regionais, o edital de tv pública, o edital voltado para filmes de arte com perfil internacional, os editais e acordos de co-produção internacional.

    As ações implementadas incidiram de forma positiva no setor audiovisual, que cresce 8,8% ao ano. Uma taxa superior à média do conjunto dos outros setores da economia brasileira, representando um valor adicionado de 0,54% na economia nacional. Esse percentual é maior do que o gerado pela indústria farmacêutica, de produtos eletrônicos e de informática, por exemplo.

    O percurso trilhado nos últimos anos posiciona a ANCINE e o Setor Audiovisual em possibilidade de aprimoramento de suas ações, com disposição para o diálogo e desenvolvimento de instrumentos capazes de proporcionar, em um curto espaço de tempo, um programa de ações afirmativas com recorte de raça e gênero em consonância com a pauta global que impõe a necessidade de aprimoramento e ajuste do setor audiovisual para garantia de maior representatividade e participação da população negra e das mulheres. E acreditamos, ainda, que deve ser incrementada uma política de formação de público, artística e técnica para que novas pessoas possam se qualificar e atuar em toda a cadeia da produção audiovisual. Além de uma política de acervo, para garantir condições para manutenção e acesso ao público da grande produção audiovisual brasileira, realizada ao longo de quase um século de atividade.

    Tudo que se alcançou até aqui é fruto de um grande esforço do conjunto de agentes envolvidos entre ANCINE, produtores, realizadores,distribuidores, exibidores, programadores, artistas, lideranças, poder público, entre outros. Acima de tudo, queremos garantir que toda e qualquer mudança ou aperfeiçoamento nas políticas públicas do audiovisual brasileiro sejam amplamente debatidas com o conjunto
    do setor e com toda a sociedade.

    Assim, pedimos às instituições, produtores e realizadores de todo o mundo que apoiem a luta e a manutenção de todos os tipos de audiovisual no Brasil. Defendemos aqui a continuidade e o incremento dessa política pública.

    Assinam esta carta os diretores e produtores dos filmes:
    "As Duas Irenes" (Fabio Meira, Diana Almeida e Daniel Ribeiro)
    "Como Nossos Pais" (Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi)
    "Em Busca da Terra Sem Males" (Anna Azevedo)
    "Está Vendo Coisas" (Barbara Wagner e Benjamin de Burca)
    "Joaquim" (Marcelo Gomes e João Vieira Jr.)
    "Mulher do Pai" (Cristiane Oliveira, Graziella Ferst e Gustavo Galvão)
    "Não Devore Meu Coração!" (Felipe Bragança e Marina Meliande)
    "Pendular" (Julia Murat e Tatiana Leite)
    "Rifle" (Davi Pretto e Paola Wink)
    "Vazante" (Daniela Thomas e Sara Silveira)
    "Vênus - Filó a Fadinha Lésbica" (Sávio Leite)

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