No princípio, havia um silêncio que durara muitas décadas. Na casa do escritor e historiador da arte Rafael Cardoso, o assunto ficara escondido sob uma mistura de culpa e vergonha.
Até o dia em que ele foi chamado pela mãe, que fez a revelação: os nomes dos bisavós e avós, bem como o de seu pai, não eram aqueles. A família tampouco era francesa, como o autor acreditava até aquele momento.
Acervo Pessoal | ||
Hugo e Gertrud Simon em meio a grupo de caçadores, anos 1920 |
Judeu de origem alemã, o bisavô de Rafael era na verdade o banqueiro e renomado intelectual de esquerda Hugo Simon, que chegara a ser ministro das Finanças do Estado da Prússia em 1918.
Simon, que fora amigo de figuras de proa, como Albert Einstein e Thomas Mann, fugira dos nazistas com a família para o Brasil. Para isso, recorrera a identidades falsas.
Agora, Cardoso começa a preencher o silêncio da família. Depois de anos de pesquisa minuciosa em arquivos na Europa, ele reconstrói a história dela no romance "O Remanescente" –também num esforço de marcar o lugar do bisavô na história alemã.
O romance foi uma das 12 obras no programa Books at Berlinale deste ano, do Festival de Cinema de Berlim, que escolhe livros para apresentar a produtores de cinema.
"Até os 16 anos, acreditava que os nomes deles eram os nomes reais. Conversava em francês com meu pai. Era tudo uma grande encenação. Quando soube a verdade, minha mãe disse que eu não podia contar para ninguém. Guardei essa interdição até ter uns 30 anos", diz o autor, que também é sobrinho-neto do escritor Lúcio Cardoso.
Por que os inocentes ficam em silêncio sobre uma tragédia que se abateu contra eles? Cardoso tentou refletir sobre a questão. E acha que há nas vítimas uma vergonha de terem sido perseguidas. "É como se você fosse culpado do crime cometido contra você."
Hoje Cardoso vive na Alemanha, desenterrando a história da família. Nos últimos anos, também tem tentado descobrir o paradeiro da coleção de arte do bisavô.
Em 2012, ocupou o noticiário ao questionar o leilão de uma das quatro versões de "O Grito", do expressionista alemão Edvard Munch.
O quadro, vendido por um colecionador norueguês, havia pertencido a Simon, que, segundo Cardoso, fora obrigado a se desfazer dela durante a ascensão do nazismo.
Ele não teve sucesso, e a obra foi, à época, a mais cara já arrematada, por cerca de R$ 239 milhões. Até hoje, Cardoso conseguiu recuperar apenas cinco quadros da coleção de Hugo Simon, que tinha nomes como Oskar Kokoschka e George Grosz.
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Ursula Simon e Wolf Demeter, tia-avó e avô do escritor Rafael Cardoso, em 1929 |
CORAGEM
Mesmo a conversa com a mãe não deu muitos detalhes ao escritor sobre a história familiar. Afinal, ela fora incumbida pelo pai de Cardoso a contá-la –porque ele, o neto de Hugo Simon, por algum motivo não sentia coragem.
O escritor só pôde saber mais detalhes aos 23 anos, quando desmontou a casa dos avós, que haviam morrido.
No mesmo armário em que ficavam os jogos de tabuleiro, achou em uma gaveta centenas de fotos e documentos. Entre eles, cartas de Thomas Mann e Albert Einstein reconhecendo a identidade de Hugo Simon (possivelmente porque ele ficara sem documentos na fuga).
A história, contada por Cardoso pelo ponto de vista de cinco personagens –a bisavó, os avós e o pai, além do bisavô–, mostra guardiões das utopias da cultura humanista que são confrontados pela brutalidade do nazismo.
Para o leitor que sabe o que houve na Europa dos anos 1930, soa irônico ver que Hugo Simon, no início da ascensão de Hitler, acreditava poder combatê-lo organizando um congresso de intelectuais e escrevendo na imprensa.
"Sou pessimista por um lado. As coisas não vão se repetir exatamente como nos anos 1930, mas tudo está degringolando de novo", diz ele, sobre a ascensão da extrema direita pelo mundo.
O autor vê isso como uma derrota da pena contra a espada? Não é por aí. O remanescente do livro não é nenhum dos seus familiares nem o próprio autor. O remanescente seria, diz, "aquilo que sobrevive depois que tudo se perdeu": no caso de seus familiares, a herança cultural e de pensamento.
O Remanescente |
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"Mesmo que as coisas piorem muito, há valores que sobrevivem, coisas indestrutíveis. Esse é o papel da arte."
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O REMANESCENTE
AUTOR Rafael Cardoso
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 59,90 (496 págs.)