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    Autor resgata história de familiares judeus que tinham identidade secreta

    MAURÍCIO MEIRELES
    DE SÃO PAULO

    25/02/2017 02h21

    No princípio, havia um silêncio que durara muitas décadas. Na casa do escritor e historiador da arte Rafael Cardoso, o assunto ficara escondido sob uma mistura de culpa e vergonha.

    Até o dia em que ele foi chamado pela mãe, que fez a revelação: os nomes dos bisavós e avós, bem como o de seu pai, não eram aqueles. A família tampouco era francesa, como o autor acreditava até aquele momento.

    Acervo Pessoal
    Hugo e Gertrud Simon em meio a grupo de caçadores, anos 1920, do livro do escritor Rafael Cardoso Credito Arquivo Pessoal - EXCLUSIVO ILUSTRADA
    Hugo e Gertrud Simon em meio a grupo de caçadores, anos 1920

    Judeu de origem alemã, o bisavô de Rafael era na verdade o banqueiro e renomado intelectual de esquerda Hugo Simon, que chegara a ser ministro das Finanças do Estado da Prússia em 1918.

    Simon, que fora amigo de figuras de proa, como Albert Einstein e Thomas Mann, fugira dos nazistas com a família para o Brasil. Para isso, recorrera a identidades falsas.

    Agora, Cardoso começa a preencher o silêncio da família. Depois de anos de pesquisa minuciosa em arquivos na Europa, ele reconstrói a história dela no romance "O Remanescente" –também num esforço de marcar o lugar do bisavô na história alemã.

    O romance foi uma das 12 obras no programa Books at Berlinale deste ano, do Festival de Cinema de Berlim, que escolhe livros para apresentar a produtores de cinema.

    "Até os 16 anos, acreditava que os nomes deles eram os nomes reais. Conversava em francês com meu pai. Era tudo uma grande encenação. Quando soube a verdade, minha mãe disse que eu não podia contar para ninguém. Guardei essa interdição até ter uns 30 anos", diz o autor, que também é sobrinho-neto do escritor Lúcio Cardoso.

    Por que os inocentes ficam em silêncio sobre uma tragédia que se abateu contra eles? Cardoso tentou refletir sobre a questão. E acha que há nas vítimas uma vergonha de terem sido perseguidas. "É como se você fosse culpado do crime cometido contra você."

    Hoje Cardoso vive na Alemanha, desenterrando a história da família. Nos últimos anos, também tem tentado descobrir o paradeiro da coleção de arte do bisavô.

    Em 2012, ocupou o noticiário ao questionar o leilão de uma das quatro versões de "O Grito", do expressionista alemão Edvard Munch.

    O quadro, vendido por um colecionador norueguês, havia pertencido a Simon, que, segundo Cardoso, fora obrigado a se desfazer dela durante a ascensão do nazismo.

    Ele não teve sucesso, e a obra foi, à época, a mais cara já arrematada, por cerca de R$ 239 milhões. Até hoje, Cardoso conseguiu recuperar apenas cinco quadros da coleção de Hugo Simon, que tinha nomes como Oskar Kokoschka e George Grosz.

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    Ursula Simon e Wolf Demeter, 1929 - EXCLUSIVO ILUSTRADA - imagens do livro de Rafael Cardoso Credito Arquivo Pessoal
    Ursula Simon e Wolf Demeter, tia-avó e avô do escritor Rafael Cardoso, em 1929

    CORAGEM

    Mesmo a conversa com a mãe não deu muitos detalhes ao escritor sobre a história familiar. Afinal, ela fora incumbida pelo pai de Cardoso a contá-la –porque ele, o neto de Hugo Simon, por algum motivo não sentia coragem.

    O escritor só pôde saber mais detalhes aos 23 anos, quando desmontou a casa dos avós, que haviam morrido.

    No mesmo armário em que ficavam os jogos de tabuleiro, achou em uma gaveta centenas de fotos e documentos. Entre eles, cartas de Thomas Mann e Albert Einstein reconhecendo a identidade de Hugo Simon (possivelmente porque ele ficara sem documentos na fuga).

    A história, contada por Cardoso pelo ponto de vista de cinco personagens –a bisavó, os avós e o pai, além do bisavô–, mostra guardiões das utopias da cultura humanista que são confrontados pela brutalidade do nazismo.

    Para o leitor que sabe o que houve na Europa dos anos 1930, soa irônico ver que Hugo Simon, no início da ascensão de Hitler, acreditava poder combatê-lo organizando um congresso de intelectuais e escrevendo na imprensa.

    "Sou pessimista por um lado. As coisas não vão se repetir exatamente como nos anos 1930, mas tudo está degringolando de novo", diz ele, sobre a ascensão da extrema direita pelo mundo.

    O autor vê isso como uma derrota da pena contra a espada? Não é por aí. O remanescente do livro não é nenhum dos seus familiares nem o próprio autor. O remanescente seria, diz, "aquilo que sobrevive depois que tudo se perdeu": no caso de seus familiares, a herança cultural e de pensamento.

    O Remanescente
    Rafael Cardoso Denis
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    "Mesmo que as coisas piorem muito, há valores que sobrevivem, coisas indestrutíveis. Esse é o papel da arte."

    *

    O REMANESCENTE
    AUTOR Rafael Cardoso
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 59,90 (496 págs.)

    Edição impressa

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