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    Instituto Volpi quer ir à Justiça contra igreja que destruiu afresco do pintor

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    01/03/2017 02h00

    Ela flutua sem pés numa imensidão azul cobalto. O rosto é só uma linha contínua entre formas ovaladas para olhos e boca. Santa Bárbara, nessa tela de Alfredo Volpi, é uma presença instável, de cores que vão de campos chapados a delicadas transparências, como se ela pudesse se desmaterializar a qualquer instante.

    Na história do artista, esse quadro, que está nas mãos de um colecionador particular e estará à venda na próxima SP-Arte, em abril, também sintetiza uma sensação de perda.

    Isso porque foi realizada em paralelo a uma das mais exuberantes obras de Volpi –seus afrescos na capela de Nossa Senhora de Fátima, hoje destruídos, tinham esse mesmo tom de azul e os mesmos traços estilizados, mas não sobreviveram a um ataque violento.

    Em 1958, a pedido da então primeira-dama Sarah Kubitschek, Oscar Niemeyer construiu em Brasília uma singela capelinha no formato de um chapéu de freira. Burle Marx fez o paisagismo, e Athos Bulcão, os azulejos da fachada.

    Volpi foi então escalado para pintar o interior, cobrindo as paredes da igreja com seu famoso tom de azul e criando sobre o altar a imagem de uma Virgem com o Menino Jesus.

    Ele imitou ali uma técnica que viu em viagens pela Itália, onde ficou maravilhado com os afrescos de Giotto e Cimabue. As duas figuras, de Maria e o filho, foram delineadas uma a uma a partir da mesma mancha cromática, como um volume único que aos poucos se divide e ganha definição.

    Esses personagens também não tinham pés e pareciam pairar acima de tudo, emoldurados por um céu azulzíssimo.

    Fiéis e padres da época não gostaram da ousadia. Diziam que a Virgem retratada por Volpi era a Nossa Senhora do Rosário, não a de Fátima. Também consideraram profanas as bandeirinhas juninas.

    Na década de 1960, rasparam então o reboco das paredes, apagando para sempre o que seria a obra-prima da fase sacra de Volpi. Quase não sobraram imagens do interior da capela –as que restam são em preto e branco e de péssima qualidade.

    Esquecido na história do modernista, o episódio voltou à tona no ano passado, quando terminou a catalogação de toda a obra de Volpi.

    Pedro Mastrobuono, presidente do instituto responsável pela memória do artista, agora vai pedir esclarecimentos à Arquidiocese de Brasília –procurada pela reportagem, a entidade não se manifestou.

    É fato que o crime de destruição de uma obra pública já prescreveu. E também ocorreu antes do tombamento da igreja por órgãos de defesa do patrimônio histórico –ela passou a ser protegida no Distrito Federal em 1982 e, em nível nacional, só há dez anos, quando Niemeyer mandou um bilhetinho ao então ministro da Cultura, Gilberto Gil.

    "Essa história precisa transparecer até para haver um resgate da memória do Volpi", diz Mastrobuono. "Não é justo isso que fizeram com ele."

    Mastrobuono, no caso, vai além da narrativa que se cristalizou, de que uma turba de católicas fervorosas liderou um ataque à obra. Na visão do advogado, o descaso com a destruição pode ter raízes na censura do regime militar.

    O arquiteto Rogério Carvalho, que restaurou a capela em 2009, quando afrescos do artista Francisco Galeno foram pintados sobre painéis cobrindo as paredes em branco, concorda com a hipótese.

    "É perto do momento do golpe que ocorre o apagamento da obra do Volpi", afirma. "A mentalidade da época era retrógrada e propícia a isso."

    Volpi, morto aos 92, em 1988, não se manifestou na época. "Não era da índole dele", diz a crítica Aracy Amaral. "Ele nunca reivindicaria nada, mesmo achando que devessem respeitar a obra."

    Não houve, aliás, protesto algum, o que reforça a tese de que os militares tenham feito vista grossa ao apagamento.

    SOBREVIVENTE

    Mesmo tarde demais, dois acontecimentos agora devem dar maior dimensão ao caso da destruição dos afrescos.

    Um deles é o fato de que "O Sonho de Dom Bosco", obra monumental de Volpi no Palácio do Itamaraty, não muito longe da igrejinha, será restaurada neste ano –o mural sofreu danos durante as manifestações de junho de 2013 e está sendo avaliado para passar por possíveis retoques.

    Outro ponto é a aparição no mercado da "Santa Bárbara", uma espécie de última sobrevivente do melhor da fase sacra de Volpi. O artista fez muitas imagens dessa natureza ao longo da vida, mas a década de 1950, quando pintou a capela de Brasília e esse quadro, é vista como seu ápice.

    Mesmo que suas imagens do tipo sempre fossem menos cobiçadas do que as de suas séries geométricas, a etiqueta de R$ 6 milhões dessa santa ilustra a fome do mercado por peças desse momento, uma vez que estão mais raras as fachadas e bandeirinhas, as obras mais caras de Volpi, que podem chegar a R$ 12 milhões.

    "Esses trabalhos têm uma pureza inacreditável", diz a crítica Denise Mattar. "Não vejo como obra menor dele. Eles têm detalhes deslumbrantes."

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