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    'Gêneros literários são notórios preguiçosos', diz Anne Carson

    SÉRGIO RODRIGUES
    COLUNISTA DA FOLHA

    04/03/2017 02h17

    O pequeno volume - são apenas 48 páginas- chamado "O Método Albertine", um lançamento da também pequena Edições Jabuticaba, preenche uma lacuna gigante: marca a estreia brasileira em livro da escritora canadense Anne Carson, 66 anos.

    O fato de não dizer respeito à literatura da Grécia antiga, especialidade dessa escritora multipremiada e inclassificável, mas em vez disso dialogar com o romancista francês Marcel Proust, não faz do livrinho uma entrada inadequada em sua obra, segundo a autora: "Uma boa porta de entrada nunca é óbvia. A saída também pode ser complicada de encontrar".

    Pouco disponível para entrevistas, essa professora de literatura clássica, poeta e ensaísta conversou com a Folha por e-mail. Como os outros gêneros que pratica, o da entrevista jornalística também é abordado por ela de forma enviesada e lacunar.

    Jeff Brown /Divulgação
    Retrato de Anne Carson
    Retrato de Anne Carson

    Apontada como candidata ao Prêmio Nobel de Literatura, Anne Carson parece estar sempre em fuga, escondendo-se por trás de tiradas espirituosas ou virando as perguntas do avesso. Vale observar que sua abordagem da tradição literária contém irreverência bem semelhante.

    Quando se pergunta se seu interesse por Proust -cujo "A Prisioneira", quinto livro de "Em Busca do Tempo Perdido", dá o mote para um ensaio livre e fragmentário- tem relação com o tema da memória, ela rebate: "Não especialmente. Eu só queria um livro bem grande para ler em francês. Em bom francês."

    Será que a intertextualidade e a mistura de gêneros seriam respostas à fadiga da literatura após milhares de anos? "Eu não estou cansada. Talvez os próprios gêneros sintam fadiga, mas não devemos ter pena deles. São notoriamente preguiçosos."

    BRAÇADAS

    Se fôssemos sistematizar um "Método Carson" (o título original do livro recém-lançado é "The Albertine Workout", palavra que se refere a uma rotina de exercícios físicos), poderíamos incluir instruções para mesclar crítica literária, tradução, filosofia da linguagem, fantasia, lirismo, narrativa e humor em configurações surpreendentes.

    Quando se pergunta a Carson o que a definição acima deixa de fora, o acréscimo também é inesperado e ao mesmo tempo, pertinente. "Natação", responde ela, adepta das braçadas como fonte de inspiração. "Piscina de 35 metros, 70 voltas."

    Natação à parte, uma definição parecida poderia ser oferecida em tese sobre Jorge Luis Borges, embora a literatura dele não se assemelhe à de Carson -que o aprecia.

    "Admiro sobretudo sua ideia do mapa que tem exatamente o mesmo tamanho da província que mapeia. Não vamos nos aprofundar nas implicações metafóricas disso para o trabalho de um escritor realista".

    Mas talvez a melhor referência para o tipo de ensaísmo literário praticado pela autora em "O Método Albertine", saltando de uma iluminação a outra na fronteira da prosa poética, seja o Roland Barthes de "Fragmentos de um Discurso Amoroso". Não por acaso, o semiólogo francês é um dos autores que ela joga nesse liquidificador.

    O editor Marcelo Lotufo explica assim a escolha de "O Método Albertine": "É um livro ao mesmo tempo sofisticado e acessível, que funciona como uma boa porta de entrada ao trabalho da Anne Carson. É também um livro curto, o que se enquadra na proposta de nossa editora."

    Lotufo afirma esperar que, aberta a porteira, "outras editoras maiores, com melhor distribuição e infraestrutura, se interessem pelo trabalho dela, que é interessantíssimo e bastante vasto".

    MESTRE DOS ADJETIVOS

    Um próximo passo poderia ser a tradução de "Autobiography of Red", livro ainda mais resistente a rótulos, que reconta um velho mito grego sob a inspiração de alguns dos poucos fragmentos que nos chegaram do poeta lírico Estesícoro (c. 650 a.C.).

    Carson apresenta Estesícoro como um grande mestre dos adjetivos. Numa ideia presente também em "O Método Albertine", dedica aos adjetivos um elogio rasgado que contraria a sensibilidade moderna e nove em dez instrutores de oficina literária.

    "Adjetivos são subjetivos", ela explica seu entusiasmo. "Quando você escolhe um, trai o ângulo da sua relação com a coisa que descreve, uma espécie de parcialidade. Substantivos e verbos são mais competentes em se disfarçar de fatos objetivos."

    Fatos objetivos não têm grande interesse para ela. Dizer que "Autobiography of Red" reconta um velho mito -o da morte do gigante vermelho Gerião, décimo trabalho de Hércules- é pouco.

    Após uma introdução erudita sobre Estesícoro, seguem-se seus fragmentos em tradução livre do grego e a "biografia" em versos do Gerião contemporâneo, que a autora transfigura num adolescente gay violentado pelo irmão mais velho e apaixonado por Hércules.

    Publicado em 1998, o livro fez grande sucesso de crítica e -de modo surpreendente, pois tem todas as marcas de uma literatura "difícil"- também de público. O crítico Harold Bloom escreveu sobre Carson: "Quase nada do que li dela deveria funcionar, mas ela faz tudo funcionar".

    A escritora canadense dá sua resposta mais longa e apaixonada ao negar que essa abordagem heterodoxa da cultura clássica seja uma estratégia para devolver vida a velhos textos embalsamados pelo academicismo.

    "A literatura dos gregos antigos não me parece necessitar de revival. Não está, de nenhuma forma significativa, morta. Aqueles escritores são tão presentes em minha mente quanto você; ninguém até hoje chegou ao fundo do seu pensamento ou exauriu suas invenções; uma única palavra em Sófocles é um país no qual se pode viajar por momentos, dias ou anos".

    Ao leitor que decidir se aventurar pela primeira vez nesses domínios, Carson recomenda se despir de pressa e buscar "a lição de cada frase". "Comece por Homero. A 'Ilíada' é simplesmente a melhor coisa que existe."

    O MÉTODO ALBERTINE
    AUTORA Anne Carson
    TRADUÇÃO Vilma Arêas e Fernando Guimarães
    *QUANTO*R$ 20, mais frete (48 págs.; vendas somente no site www.edicoesjabuticaba.com.br)

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