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    Romance de Walt Whitman perdido por 165 anos prenuncia 'Folhas de Relva'

    JENNIFER SCHUESSLER
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    10/03/2017 12h15

    G. Frank Pearsall/.
    O poeta Walt Whitman, em 1870, no Brooklin, Nova York
    O poeta Walt Whitman, em 1870, no Brooklin, Nova York

    Os leitores que abriram o "New York Times" de 13 de março de 1852 podem ter visto um pequeno anúncio, na página 3, para um folhetim que começaria a ser publicado no dia seguinte por um jornal rival.

    "UMA RICA REVELAÇÃO", principiava o anúncio, que prometia uma história movimentada que trataria das "Maneiras e Moral das Pensões, certas Cenas da História da Igreja, Operações de Wall-st", e "Cenas explícitas de Homens e Mulheres" (apresentadas, não tema, com as "explicações necessárias para a compreensão correta do que está acontecendo").

    Talvez o folhetim não fosse assim tão atraente. A história, que não foi resenhada ou reeditada, parece ter fracassado completamente.

    Mas agora surge uma nova revelação: o folhetim, publicado anonimamente, era nada menos que um romance escrito por Walt Whitman.

    "Life and Adventures of Jack Engle" [vida e aventuras de Jack Engle], uma trama de 36 mil palavras descoberta no ano passado por um estudante de pós-graduação, publicado online pela "Walt Whitman Quarterly Review", e em forma de livro pela University of Iowa Press. Uma história sobre as aventuras de um órfão, com tom próximo ao dos romances de Charles Dickens, o romance traz um advogado malévolo, quakers virtuosos, políticos populistas, uma sensual dançarina espanhola e numerosas reviravoltas absurdas na trama, bem como mudanças incômodas de foco narrativo.

    "É a versão de Whitman para as histórias urbanas de mistério, um gênero popular na época, opondo os '10 mil' —aqueles que hoje definiríamos como 'o 1%'— ao milhão de cidadãos comuns", disse David Reynolds, especialista em Whitman no Centro de Pós-Graduação da Universidade Municipal de Nova York.

    Mas o livro, dizem Reynolds e outros acadêmicos que o leram, também oferece pistas sobre outro mistério: como um jornalista comum e poeta quase sempre convencional se transformou no autor dos versos livres de "Folhas de Relva" - sensuais, filosóficos, altamente experimentais e praticamente inclassificáveis.

    "É como poder observar a oficina de um grande escritor", disse Ed Folsom, editor da "Walt Whitman Quarterly Review". "Estamos descobrindo o processo de descoberta pessoal de Walt Whitman".

    Era uma transformação que Whitman mesmo desejava obscurecer. Ele pouco revelou sobre o começo da década de 1850, quando trabalhou como carpinteiro em Brooklyn e publicou muito poucos escritos, trabalhando em lugar disso, no que viria a se tornar a primeira edição de "Folhas de Relva", em 1855.

    Mais tarde, ele praticamente rejeitaria seu bem sucedido romance "Franklin Evans, or The Inebriate" [Franklin Evans, ou O Ébrio], obra antialcoolismo de 1842, e não demonstrou grande interesse em ver reeditados os seus contos.

    "Meu sério desejo", ele escreveu em 1882, "seria que todas aquelas peças infantis e cruas caíssem discretamente no esquecimento". Em 1891, quando um crítico estava planejando reeditar algumas de suas primeiras obras, ele foi bruto: "Se tivesse a oportunidade, me sentiria tentado a dar um tiro nele".

    Isso não incomoda Zachary Turpin, o aluno de pós-graduação da Universidade de Houston que encontrou "Jack Engle". Na verdade, essa é a segunda ocasião em que o relâmpago dos achados em arquivos atinge Turpin. No ano passado, ele anunciou a descoberta de "Manly Health and Training" [saúde e condicionamento másculo], um tratado de autoajuda de 47 mil palavras que Whitman publicou no "New York Atlas" em 1858.

    "Um amigo brincou que essa seria a inscrição da minha lápide", disse Turpin.

    A biblioteca da literatura norte-americana perdida abarca muitas "incógnitas conhecidas", como diz Turpin (ecoando Donald Rumsfeld), como por exemplo "The Isle of the Cross", de Herman Melville, o oitavo e último romance do escritor, que ele pode ter ou não concluído, e "The Sleeptalker", de Whitman, um romance que ele aparentemente concluiu em 1850 e do qual fala em suas cartas, mas que não sobreviveu.

    Turpin transformou em especialidade a busca de "incógnitas conhecidas", usando vastos bancos de dados online que compilam milhões de páginas de jornais do século 19. Certo dia, em maio do ano passado, ele fez uma busca abarcando certos nomes e frases, com base em anotações fragmentárias para uma possível história sobre um advogado fraudulento chamado Covert e um órfão chamado Jack Engle —uma das muitas anotações contidas nos volumosos cadernos de Whitman que o Walt Whitman Archive classifica como não conectadas a material impresso conhecido.

    E da busca surgiu o anúncio, que incluía o nome Jack Engle. O folhetim seria publicado pelo "Sunday Dispatch", um jornal nova-iorquino para o qual Whitman sabidamente contribuía.

    "Minha intuição era forte, nesse caso", disse Turpin.

    Turpin solicitou à Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos uma digitalização da primeira página do folhetim. (A instituição detinha a única cópia conhecida (e ainda não digitalizada ou microfilmada) do jornal na data em questão. Um mês mais tarde, ele se espantou ao abrir um arquivo que mostrava uma página amarelada contendo o nome "Jack Engle" e outros nomes das anotações de Whitman.

    "Estava na casa dos meus sogros, montando um cercadinho para bebês, quando chegou o e-mail", ele recorda. "Daquele dia até hoje, tenho essa história fervilhando em minha cabeça".

    O romance de 36 mil palavras, publicado em seis partes repletas de erros tipográficos, talvez não mereça lugar no cânone literário dos Estados Unidos.

    "Não é um grande romance, ainda que não seja uma leitura ruim", disse Reynolds, autor de "Walt Whitman's America".

    Turpin define a história como "movimentada, interessante, bonita, bonita e bizarra", com reviravoltas absurdas, nomes jocosos e conspirações repentinamente reveladas que sugerem "um Thomas Pynchon pré-modernista", ou mesmo [o filme] "Deu a Louca no Mundo".

    Tudo isso pode parecer muito distante de "Folhas de Relva". Mas Jack Engle e os demais jovens personagens masculinos lembram a persona de homem das ruas - "Walt Whitman, americano, durão" - que ele criou em "Folhas de Relva".

    E há o capítulo 19, que Folsom define como "momento mágico". Nele, Jack vai ao cemitério da igreja Trinity, no sul de Manhattan, e a trama rocambolesca para, substituída por devaneios sobre a natureza, imortalidade e a unicidade do ser que ecoam de maneira notável as imagens que Whitman emprega em sua obra-prima.

    "A grama longa, fragrante, cobria meu rosto", afirma Jack, o protagonista e narrador. "Por sobre mim estava o verde, com toques marrons, das árvores nutridas pela decomposição dos corpos dos homens".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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