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    Crítica

    'Pai País, Mãe Pátria' revela o acanhamento de nossa crítica

    LAURA ERBER
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    11/03/2017 02h06

    Reprodução
    Central do Brasil' é um dos filmes comentados no ensaio "Pai país, mãe pátria"
    'Central do Brasil' é um dos filmes comentados na obra "Pai País, Mãe Pátria"

    Pai País, Mãe Pátria (ótimo)
    QUANTO: R$ 34,90 (152 págs.)
    AUTOR: José Carlos Avellar
    EDITORA: Instituto Moreira Salles

    Quem passou a acompanhar a crítica de cinema nos anos 1990 terá do gesto crítico uma imagem conformada à divisão tradicional entre reflexão e prática. De um lado, críticos que pensam e julgam, do outro, cineastas que fazem.

    A essa antiga dicotomia se opõe claramente o livro de José Carlos Avellar "Pai País, Mãe Pátria". Nesse longo ensaio, Avellar (1936-2016) se reconecta com a inventividade reflexiva dos textos que publicava no "Jornal do Brasil" na década de 70 e mostra que o exercício crítico, longe de ser só suspensão reflexiva, é outra maneira de fazer cinema.

    No convívio prolongado com personagens, Avellar lida com as imbricações entre o excesso e a falta do pai, o colapso e sequestro das mães, a busca pelo país e as feridas identitárias de que se ocupou o cinema brasileiro recente.

    Toma os precários e violentos laços de família como problema fundamental do nosso imaginário fílmico, indo da análise da personagem órfã à questão da orfandade cultural e dos efeitos da colonização no plano simbólico macro e no microplano afetivo, do olhar e da fala.

    A grande sensibilidade de Avellar para um tipo de escuta temática e seu modo de destacar cenas, falas e gestos –fazendo com esses fragmentos seu próprio cinema– permite uma abordagem mais criativa e menos amarrada à moldura genérica.

    É produtiva a visão do conjunto desses filhos que, em sua busca, gestam e geram os pais –seja em "Central do Brasil", de Walter Salles, seja nos documentários "Os Dias com Ele", de Maria Clara Escobar, "Rocha que Voa", de Eryk Rocha e "Diário de Uma Busca", de Flávia Castro.

    Se por vezes insiste demais na vinculação dos filmes da retomada ao cinema novo –herdeiros temáticos que remeteriam à literatura de Graciliano Ramos– o estilo crítico de Avellar é coerente com uma reflexão sobre os limites da historiografia tradicional, que tende a enclausurar os movimentos de vanguarda na forma como se autodefinem teórica e historicamente.

    O leitor talvez sinta falta da incursão pelas pequenas produções independentes e pelas realizações de gerações mais jovens. Mas poucos críticos conseguem revelar, por contraste, o acanhamento acadêmico e o espírito de "resenhismo" que caracteriza a crítica de cinema atual, em geral incapaz de análises mais panorâmicas e atrevidas.

    O que fica desse livro é a potência literária da crítica e a delicadeza da percepção do crítico cinéfilo –"cinefilho" diria Serge Daney– que era Avellar, aquele que exercia a crítica como intensificação da consciência nascida do interior das obras e seu conjunto.

    O crítico como especialista não é e aquele que se fecha nas polêmicas de seu campo, mas precisamente aquele intelectual capaz de criar uma abertura, criando percursos entre as especificidades da linguagem artística de que se ocupa e o imaginário cultural, político e social que aquela projeta e mobiliza.

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