• Ilustrada

    Thursday, 02-May-2024 20:44:16 -03

    Filho de Ogum, poeta Derek Walcott visitou terreiro em SP; leia relato

    LÚCIA CRISTINA DE BARROS
    DE SÃO PAULO

    17/03/2017 19h20

    Luzia Ferreira - 28.5.95/Folhapress
    O poeta caribenho Derek Walcott, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1992. [FSP-Mais-28.05.95]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA***
    Derek Walcott posa para a Folha em 1995

    Em 11 de junho de 1995, a Folha acompanhou o poeta Derek Walcott, ganhador do Nobel de literatura morto nesta sexta-feira (17). O texto abaixo, resultado desse encontro, foi publicado na ocasião na antiga Revista da Folha

    *

    "Hoje eu decidi que vou ser difícil." Derek Walcott, 65 anos, prêmio Nobel de Literatura em 1992, está sentado no hall de um hotel paulista. Bloquinho e caneta em mãos, escrevendo uma nova peça, o dramaturgo e poeta caribenho vai logo dizendo, com cara de poucos amigos: "Você está intimidada?". Ele caminha até o carro que o levará ao terreiro Aché Ile Obá, na zona sul da cidade, onde descobrirá seu santo: Ogum, que rege a guerra. O terreiro de candomblé é o único ponto que restou de um roteiro que pretendia mostrar ao poeta várias partes da cidade para discutir a mistura racial e cultural brasileira. Mas esses eram os planos antes de Walcott chegar ao Brasil e, mau-humorado -"com saudades do mar"-, trancar-se em seu quarto.

    "Até agora, vi o aeroporto, o hotel e a televisão. O senhor está cansado? "Não, eu sou chato mesmo."
    São quase três da tarde. Trânsito pesado. Walcott concorda em falar. Pergunta: se ele pensa que um dos grandes desafios da modernidade é a coexistência das diferenças. Resposta: "Eu penso que um dos grandes desafios da modernidade é responder a perguntas profundas no banco de trás de um táxi."

    Não, isto não vai ser fácil.

    Assassinato em série

    Derek Walcott é um dos grandes poetas vivos da língua inglesa. Um senhor com uma leve barriguinha, de beleza discreta, tem a fala mansa e as palavras ferinas.

    A disciplina do escritor ele julga que adquiriu graças ao cigarro. "Levantava todo dia porque pensava: vou fumar. Daí eu escrevia enquanto fumava. Quando deixou o vício, há menos de um ano -substituindo-o por outro, "assassinato em série", especialmente de jornalistas-, Walcott continuou escrevendo.

    As cinzas da obra

    Seu trabalho, porém, "deteriorou-se consideravelmente". Tanto, que Walcott diz que divide sua obra em duas fases, do fumante e do não-fumante, "a.F. e d.F., como antes e depois de Cristo". Como o trabalho da segunda fase é "ridículo", ele aconselha quem for a uma livraria a perguntar: "esse livro é a.F. ou d.F.?", e só comprar os primeiros.

    Walcott está rindo, um riso de desafio e deboche, de quem acha graça de si próprio. Preso dentro de um carro, cercado por um motorista, uma acompanhante e uma jornalista, ele está resignado a "fazer papel de escritor", coisa que detesta.

    Santa Lucia

    Vai dar a entrevista marcada, mas em seus termos: divertindo-se em dizer qualquer coisa que julgue poder chocar. Depois, quieto, espera por alguma reação do interlocutor. Mas o silêncio parece incômodo para esse mestre da língua, que enche o ar com mais palavras. "Tenho sorte de viver numa ilha, para onde posso sempre voltar", diz, confortável com a rotina da vida em Santa Lucia -escrever, nadar e ir para casa faminto.

    Descuido de simpatia

    A ilha, no arquipélago das Antilhas, é sua casa, seu tema de muitas poesias e sua saudade.

    O "mea culpa" dura pouco. O carro se aproxima do terreiro. Pára. Antes de descer, os olhos desconfiados, Walcott atira: "Mas de quem foi essa idéia ridícula de me trazer a um lugar tão clichê?" Fica sabendo que o candomblé tem importância na cultura brasileira. Entra resignado.

    Mãe Sylvia, que dirige o terreiro, está em festa. É com evidente prazer que ela recebe Walcott em sua sala principal, explica o significado das várias imagens no templo, das roupas que os devotos envergam, e então leva o poeta à sala onde joga búzios para identificar seu santo.

    Num pedaço de papel, ela pede a Walcott que escreva seu nome e data de nascimento. Derek Walcott, 23 de janeiro de 1930. Não é possível! A repórter também é de 23 de janeiro! Ele não acredita, quer ver os documentos. Com a carteira de identidade da sua vítima em mãos, Walcott ouve Mãe Sylvia descrevê-lo: "Olha só, ele também tem mediunidade. É bravo! Gosta de tudo correto. Parece tranquilo, mas pode virar de uma hora para outra."

    Filho de Ogum e tendo Iemanjá como seu segundo orixá, Walcott é descrito como "um lutador, um homem que abre caminhos e luta pelo próximo". Walcott agradece a honra de ter sido recebido no terreiro. Não quer fazer perguntas. Sai apressado.

    De volta ao banco de trás do táxi. O poeta não quer continuar a entrevista imediatamente. Silêncio.

    Mera coincidência

    Quando as palavras retornam, Walcott fala da peça em que está trabalhando no momento, junto do cantor Paul Simon. "É uma história entre Porto Rico e Nova York, sobre um assassinato cometido por uma gangue de adolescentes nos anos 50." Na peça há uma cena crucial, em que a mãe de um jovem vai ao equivalente caribenho do candomblé, chamado santeria. Lá, a mãe de santo joga búzios para prever o futuro do rapaz. Qualquer semelhança com o que aconteceu com Walcott no terreiro é mesmo mera coincidência. Ele se rende: "É impressionante... Passar você mesmo pela experiência produz uma sensação estranha. Para mim foi uma sorte." Conta que vai reescrever a cena.

    Enfim o tráfego se mexe. O poeta está cismado: encontrou alguém, fora seu irmão gêmeo, que nasceu no mesmo dia em que ele -"como você ousa? Só grandes homens podem nascer nesse dia"-, e que ainda por cima tem o nome de sua ilha e passa pela experiência de sua personagem. "Não acredito em previsões ou coincidências", diz. Mas ali estamos, uma coincidência atrás da outra: "O que faremos a respeito disso? Documentos de novo, por favor. RG, CIC, carteirinha do clube. Não se conforma. Decreta: "Para mim, você é minha irmã gêmea."

    Caretas e canelas

    Trânsito lento. A acompanhante de Walcott está preocupada: teme que o atraso irrite o poeta e ele desista das fotos. Que nada: dali a pouco Walcott vai posar feliz, fazer caretas e mostrar a canela fina.

    Ainda no carro, a conversa já flui melhor. Por trás do homem que odeia fazer papel de escritor parece espreitar o escritor de versos inesquecíveis, o pintor que na intimidade registra paisagens.

    "Que rua é essa?" A Paulista, uma das principais avenidas de São Paulo, cuja história remonta aos tempos dos barões do café. Walcott vê a casa antiga pintada de um rosa forte que ostenta na fachada o M amarelo do MacDonald's. Grita: "Meu Deus! O que é isso?! As pessoas não se revoltam?!" Comenta a destruição, conta que no Caribe o mesmo acontece. Fala de história e tradição, poesia e dor. Volta sempre à data de nascimento.

    Razoavelmente suportável

    O senhor pretende visitar alguns lugares enquanto está aqui ou só ficar em seu quarto no hotel? Surpresa: Walcott tem uma gargalhada gostosa. "Você nasceu no mesmo dia em que eu. Tem as mesmas atitudes. Eu vou visitar o Brasil e ficar no meu quarto de hotel -esse é o tipo de coisa que eu diria." Ele emenda: "E porque você se chama Lúcia, e porque nasceu no dia 23 de janeiro, e porque você foi razoavelmente suportável, pode me chamar de Derek." Estende a honra à sua acompanhante: "Não quero mais saber de sr. Walcott por aqui".

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024