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    Museu em Nova York celebra Georgia O'Keeffe como diva da causa feminista

    SILAS MARTÍ
    EM NOVA YORK

    28/03/2017 02h35

    "Ela usava preto, preto e preto. E suas roupas eram como as dos homens, de linhas retas. Ela não acreditava em rendas e babados." Georgia O'Keeffe, como lembra esse testemunho de um aluno, parecia mesmo levar para o guarda-roupa a secura das paisagens desérticas que pintava.

    Nos milhares de retratos que fizeram dela, fotógrafos também deixam transparecer uma atração obsessiva por seu rosto anguloso e impenetrável, como se esculpido num rochedo fritando ao sol.

    Mais do que a pintora que plasmou uma das visões mais originais e robustas da paisagem da América profunda, O'Keeffe ressurge agora numa mostra no Brooklyn Museum, em Nova York, como uma espécie de diva feminista. É uma mulher estoica, um tanto masculinizada, elegante até o último fio de cabelo.

    Divulgação
    Georgia O'Keeffe em retrato de Alfred Stieglitz da década de 1920
    Georgia O'Keeffe em retrato de Alfred Stieglitz da década de 1920

    Todo o esforço da exposição, aliás, é provar que sua obra fundamental para a história da pintura no século 20 também se manifestava no dia a dia, na decoração de suas casas em Nova York e no Novo México e nas roupas que ela mesma costurou para vestir.

    Suas camisas brancas e vestidos pretos, de fato, têm disfarçados nas mangas e golas os mesmos volteios das formas orgânicas que pintou -O'Keeffe ficou famosa com suas telas de flores gigantes, lembrando às vezes detalhes da anatomia feminina, e ossadas de animais emoldurando desertos faiscantes.

    Mais do que uma celebração de sua obra, a mostra destrincha o culto à sua personalidade. O'Keeffe era uma professora de artes do interior que se revelou uma das maiores modernistas da América quando se mudou para Nova York na virada para a década de 1920 e se casou com Alfred Stieglitz, poderoso fotógrafo e galerista.

    Stieglitz, que fez mais de 300 retratos dela ao longo de duas décadas, também colaborou para arquitetar sua imagem de monge obstinado, preocupada só com a pintura e fazendo do corpo uma tela em branco a ser coberta por campos chapados de preto e branco. A exceção foram os jeans.

    Numa carta, O'Keeffe, que passou a se vestir como uma "cowgirl" moderna quando se mudou, na década de 1940, para o deserto do Novo México, escreveu que os "'blue jeans' eram talvez o único traje nacional" dos americanos.

    Não faltam imagens dela de chapéu de vaqueiro e mesmo camisas e calças jeans em suas andanças pelo deserto. Mas, na cidade, O'Keeffe manteve até o fim de sua longa vida -ela morreu aos 99, em 1986- o estilo que críticos definiram como eclesiástico ou de esfinge, sempre cruzando a fronteira entre os gêneros.

    Em tempos de misoginia em alta, ou pelo menos mais denunciada do que nunca, O'Keeffe é vista pelo museu como um ícone da causa feminista, algo nos moldes de Frida Kahlo, só que com visual mais austero, um eco fashion do minimalismo americano.

    PURPURINA
    Essa onda de enquadrar o artista como celebridade reverbera em outras instituições, em especial com nomes que tiveram projeção além do círculo restrito das artes visuais, como Jean-Michel Basquiat, alvo de uma exposição agora em Toronto e em breve no Masp, e Andy Warhol.

    O mestre da arte pop, aliás, também retratou O'Keeffe, que na mostra do Brooklyn Museum aparece cor de laranja numa serigrafia purpurinada dele. É uma afronta ao tal estilo de pretos e brancos austeros imortalizado por ela, mas em sintonia com a tendência de que o artista, além de fazer sua obra, deve estar no centro das atenções.

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