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    Opinião

    Ainda que não saibam formar uma frase, todos são escritores

    ANTONIO RISÉRIO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    30/03/2017 02h18

    O fenômeno atinge as artes em geral, mas vou tratá-lo no campo literário: é o horror atual (prático e teórico) a tudo que diga respeito à qualidade e ao rigor das criações textuais. Abolidos os critérios, ninguém mais é leitor –todos agora são "escritores", ainda que não saibam construir uma frase.

    Como era esperável, a recusa até agressiva da qualidade parte justamente daqueles que estão longe de poder demonstrá-la em seus textos ("rabiscos com intenção alfabética", seria melhor dizer, lembrando Machado de Assis).

    Em "Ao Mesmo Tempo", Susan Sontag comentou, observando que atravessamos um tempo de reação: "Nas artes ele assume a forma de uma ação intimidadora contra as grandes obras modernas, tidas como difíceis demais, exigentes demais com o público, inacessíveis". E ainda: se alguém defende um padrão de qualidade, é atacado como elitista –"uma nova bandeira dos filisteus".

    No entanto, a qualidade existe. Mesmo que escasseie o número dos que sabem cumprimentá-la –e mesmo que possamos não gostar de muitas das suas expressões.

    Para dar um exemplo pessoal, não consigo reouvir "Le Marteau sans Maître", mas jamais questionaria a qualidade do trabalho de Pierre Boulez.

    Mas fiquemos no nosso tema. Na literatura recente, tome-se o Jonathan Franzen de "Liberdade". Podemos considerá-lo excessivamente preso à forma romanesca oitocentista. Mas sua narrativa é poderosa e sua escrita é requintada. O terno pode ser careta, mas o alfaiate é de primeira.

    Mas nossos atuais e súbitos milhares e milhares de supostos escritores, incapazes de manejar as ferramentas do seu fazer, odeiam isso. Fingem que desprezam a competência alheia. E fazem discursos aparentemente "libertários" sobre o assunto, como se uma nova cultura devesse se buscar não através do aprimoramento educacional, mas na base da ignorância crescente.

    É assim que os mais esdrúxulos "relativismos" pululam por aí. Para escapar das dificuldades da práxis literária, pretende-se que a qualidade narrativa, ou o desempenho no campo textual, deem lugar ao "vivencial", ao "testemunho literal do eu". Mas aí o que temos não é literatura, e sim relatos existenciais quase sempre simplistas e deliriosos, presos nas armadilhas de "apartheids" sexoétnicos.

    Sinto muito, mas, como não me canso de repetir, a arte não é uma terra de ninguém para o grande espetáculo da incompetência. Relativizar a produção poética significa alargar a teoria e a prática do discurso criativo para além das balizas desenhadas pelo modelo greco-latino de criação textual –e não a pretensão estúpida de enfiar num mesmo saco um terceto de Dante Alighieri e um grafite borrado da Vila Madalena.

    Fernando Pessoa disse que ninguém escreve mais do que uma dúzia de poemas realmente interessantes ao longo da vida. Mas nossos atuais escritores pretendem produzir o dobro –e numa só manhã. Quando pelo menos 99% deles, se tivessem sensibilidade e conhecimento, se contentariam em formar uma legião de leitores razoáveis.

    Para que se tenha uma boa ideia do quadro, antigamente os educadores diziam que nossas crianças precisavam aprender a ler e escrever. Hoje, o mesmo se pode dizer a propósito de nossos "escritores" –ou antes, escreventes, Barthes diria.

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