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    Enumerações ilustram a falha do dizer em 'A Palavra Algo'

    LEONARDO GANDOLFI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    01/04/2017 02h18

    A PALAVRA ALGO (bom)
    QUANTO: R$ 35 (112 págs.)
    AUTOR: Luci Collin
    EDITORA: Iluminuras

    O primeiro verso do livro "A Palavra Algo" afirma "o poeta finge". E a seguir temos um rol de ações –"pontes caem", "a bolsa quebra", mas "o poeta" continua a fingir.

    Esse primeiro poema traz uma das principais marcas do novo livro de Luci Collin: a de uma poesia que se faz a partir enumerações. Em muitas destas, a pluralidade se relaciona com a repetição.

    É assim que as listas –entre diversidade e reiteração– ajudam a compor o ritmo dos poemas. Um recurso sonoro de destaque parece ser a anáfora –a reincidência de certa palavra ou expressão no início de frases enumerativas.

    Um exemplo é o poema "Isso Posto": "impecável/ como uma aurora instala um dia/ como o botão abriga a rosa aberta// implícito/ como a lua define a decisão da vazante/ e como o sol define a indulgência da lua". A cada início de estrofe há um adjetivo e dois versos que estabelecem com ele relação comparativa.

    Theo Marques/Folhapress
    Curitiba, Parana, Brasil, 16-02-2017, 14h30 - (E/D) Luci Collin, Assionara Souza e Carol Sakura estão entre as escritoras mulheres que atuam em Curitiba e que foram listadas nos ultimos tres anos pela poeta Andreia Carvalho Gavita. No momento a lista esta
    À esquerda Luci Collin, autora de 'A Palavra Algo', ao lado de Assionara Souza e Carol Sakura

    O texto continua: "infinito/ como o entusiasmo dessa tempestade/ e como o pardal abrange o telheiro// algo/ como o primeiro olhar da mãe pro filho/ e como o último sorriso de um pai". A máquina do poema emperra quando o adjetivo some, sendo substituído, de forma sintomática, pela palavra "algo".

    Assim, em vez do adjetivo que determina, temos o pronome indefinido que torna incerto. E, quando tal indistinção se dá, o texto sai de paisagens escapistas ou irônicas, chegando a imagens que conseguem inscrever "algo" mais caro: o nascimento e morte dos que amamos.

    Já em termos narrativos, o uso de listas, com repetições, poderia sugerir uma narração que não avançasse. Isso não ocorre. Por exemplo, em "Bilhete", a reiteração faz com que a narração vá ganhando velocidade: "e os anos fecundaram a pele e a lembrança/ e eu tive doença e cansaço e fiquei boa/ e tive leva de crianças ao redor da casa".

    O caráter acumulativo valoriza ainda o choque entre imagens, ajudando a produzir o discurso metafórico ao longo do livro. Metáfora que é convocada menos como força do que como impotência de dizer. Em outras palavras, nomear para não perder, mas mesmo assim perder.

    A Palavra Algo
    Luci Collin
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    Páginas depois, o livro traz novamente o "fingir" –convocando também o falso cognato do verbo em inglês– para falar de uma insuficiência: "o poema é precariedade/ finge/ pretende".

    A acumulação das imagens parece ser uma astuta e aflita resposta a tal precariedade, porque, no fim, o poema sabe que "grita com uma voz parecida/ mas que nunca chega a ser/ voz de flor".

    Leonardo Gandolfi é poeta e professor de literatura portuguesa da Unifesp.

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