• Ilustrada

    Sunday, 28-Apr-2024 20:55:05 -03

    Crítica

    'Tropismos' flagra movimentos íntimos do ser

    SÉRGIO RODRIGUES
    COLUNISTA DA FOLHA

    01/04/2017 02h12

    Divulgação
    A escritora francesa nascida na Rússia Nathalie Sarraute (1900-1999), que tem seu primeiro livro, 'Tropismos', lançado no Brasil pela Luna Parque
    A escritora francesa Nathalie Sarraute tem seu primeiro livro, 'Tropismos', lançado no Brasil

    TROPISMOS (ótimo)
    QUANTO: R$ 35 (120 PÁGS.)
    AUTOR: Nathalie Sarraute
    EDITORA: Luna Parque
    TRADUÇÃO: Marcela Vieira

    Com a nova edição de "Tropismos", o primeiro livro da escritora francesa de origem russa Nathalie Sarraute (1900-1999), o leitor brasileiro tem mais uma chance de conhecer uma obra experimental e rigorosa que, driblando a sina de tantos trabalhos "vanguardistas", envelheceu bem.

    Lançado em 1939, "Tropismos" é um conjunto de 24 textos curtos e independentes que buscam flagrar os movimentos interiores sutis de personagens sem nome em situações do dia a dia.

    Falar em "personagens" é impreciso. Um dos esteios da singularidade de Nathalie Sarraute é negar-lhes a constituição de uma identidade que pudesse sugerir um simulacro de "pessoa".

    Essa despersonalização a levaria a ser considerada uma precursora do "noveau roman", movimento que, nos anos 1950, projetou nomes como Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras. Mas Sarraute tem identidade própria.

    Filha declarada de modernistas como Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf –e tão desconfortável quanto eles com as convenções herdadas da ficção do século 19–, a autora se distingue pela operação radical de sufocar no berço tanto os personagens quanto os embriões de enredo que esboça. Só o instante lhe interessa.

    Embora sua literatura seja intimista, não cabe falar em "fluxo de consciência".

    Virginia Woolf é sua parente mais distante do que Clarice Lispector, com quem a escritora francesa compartilha dois traços marcantes: o fascínio pelos abismos que margeiam a linguagem e a habilidade de injetar um terror difuso na cena mais banal.

    "Tropismos", no vocabulário das ciências naturais, são os movimentos feitos por organismos vivos em resposta a estímulos externos. Em certo sentido, a paisagem interior que o livro busca flagrar é mais biológica que psicológica.

    Redefinido pela autora, o termo passa a significar "movimentos interiores que precedem e preparam nossas ações, nos limites da consciência". Naquilo que um crítico chamou de "porões do ser", as criaturas teriam uma universalidade situada aquém de contingências pessoais e históricas.

    Nossa época intoxicada de estudos culturais não gosta da "universalidade", que suspeita ser só uma construção ideológica marota.

    O risco de trabalhar no plano abaixo da história e da consciência fica claro quando a autora declara, em entrevista de 1990 à "Paris Review", que "Hitler e Stálin devem ter vivenciado os mesmos tipos de tropismo que qualquer pessoa".

    Diante disso, afirmar que sua literatura envelheceu bem pode parecer um contrassenso. Não é. Os minicontos de Sarraute revelam uma prosadora fina em luta corporal com o limo de falsidade que tende a se acumular nas engrenagens da ficção literária. Não por acaso, ela dizia não distinguir fronteira entre prosa e poesia.

    A luta é comovente porque condenada ao fracasso, mas não faz menos sentido hoje do que em 1939 –talvez faça mais. O elemento que Sarraute isolou em laboratório já na estreia, e ao qual manteve fidelidade até o fim, está presente no trabalho de qualquer ficcionista que encare seu ofício com rigor, embora em geral apareça em compostos: como traduzir em palavras, essas mentirosas, a experiência de simplesmente ser?

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024