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    Crítica

    Fiel ao realismo, autora Alice Munro aponta para o futuro

    ROBERTO TADDEI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    01/04/2017 02h04

    Chad Hipolito-10.dez.2013//Associated Press/The Canadian Press
    A escritora canadense Alice Munro na casa de sua filha, em Victoria, no Canadá
    A escritora canadense Alice Munro na casa de sua filha, em Victoria, no Canadá

    O PROGRESSO DO AMOR (ótimo)
    QUANTO: R$ 54,90 (384 PÁGS.)
    AUTORA: ALICE MUNRO
    EDITORA: BIBLIOTECA AZUL
    TRADUÇÃO: Pedro Sette-Câmara

    Os contos da escritora canadense Alice Munro, que sempre foram vistos como filiados a uma tradição que remonta a Tchékhov e ao século 19, podem hoje ser lidos como mais contemporâneos do que os de nossos contemporâneos mais radicais.

    Na esteira do Nobel de 2013, o lançamento no Brasil de um de seus primeiros livros, "O Progresso do Amor", de 1985, reforça essa ideia.

    Nos contos dessa coletânea não se encontra aquilo que o ensaísta argentino Ricardo Piglia (1941-2017) dizia ser a marca do gênero: textos que articulam duas histórias, uma à mostra, outra oculta, o "que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta".

    Em Alice Munro não há segredo que não possa ser dito. As elipses não guardam mistérios. Não há ênfase na ideia de que o enredo possa favorecer a compreensão de uma história. Nem mesmo a sugestão de que exista uma verdade que sobreponha ou que contenha outra.

    A formulação de Piglia parecia muita acertada em um mundo de certezas científicas, religiosas ou políticas que não davam conta de explicar o mistério da experiência humana.

    Não é mais esse o mundo que habitamos. Neste início de século da pós-verdade, a história secreta, o oculto, não é onde se esconde a verdade. É antes um recurso para gerar incerteza e confusão. E é aí que Munro não cai, para onde não quer que vá o seu leitor, a sua leitora.

    PISTA FALSA

    No conto que dá título ao livro, por exemplo, a narradora recorda uma suposta tentativa de suicídio da mãe. Durante um jantar, a tia e a mãe contam histórias antagônicas sobre o incidente.

    A narradora, então, pensa: "Por que a versão de Beryl do mesmo acontecimento seria diferente da versão da minha mãe? ["¦] Foi a versão da minha mãe que se susteve, por um tempo. Ela absorvia a história de Beryl, fechava-se sobre ela. Porém a história de Beryl não desapareceu; ela ficou trancada por anos, mas não foi embora".

    O leitor mal-acostumado procurará na passagem uma pista para a solução de um mistério. Mas Munro quer nos levar por outro caminho. O mundo não é uma coisa ou outra. Tampouco é a síntese, dialética ou não, de duas possibilidades.

    Já a personagem principal de "Uma Veia Esquisita", em certo momento, diz que "a confusão era abundante no mundo tal como ela o conhecia, e os adultos com frequência se ressentiam de que se lhes pedisse para ajeitar as coisas".

    Assim parecem ser construídos os contos de Munro. Não é tarefa da autora ajeitar as coisas, ou escondê-las para que a descoberta do segredo dê algum alento ao leitor. Apresentar as coisas em sua integridade, ainda que recortadas no tempo e no espaço, é o que ela faz. Mais do que isso seria trair a honestidade das personagens e a vida.

    O Progresso Do Amor
    Alice Munro
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    O fato de não haver explicações não quer dizer que seus textos sejam confusos. Nada mais claro, hoje, do que um conto de Munro.

    Ao se filiar a uma tradição realista pré-moderna, a autora acabou por abrir mão também de recursos pós-modernos que dominaram a literatura do século 20, como a metanarrativa e a ironia. Paradoxalmente, tornou-se uma escritora que aponta para o futuro.

    Roberto Taddei é coordenador da pós-graduação em formação de escritores do Instituto Vera Cruz.

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