• Ilustrada

    Wednesday, 01-May-2024 23:25:59 -03

    RÉPLICA

    Texto de jornalista sugere que negros não possam agir por si

    LEONARDO NASCIMENTO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    05/04/2017 02h06

    Divulgação
    'Open Casket' (caixão aberto), de Dana Schutz, ocasionou protestos ao ser exposto em Nova York
    'Open Casket' (caixão aberto), de Dana Schutz, ocasionou protestos ao ser exposto em Nova York

    A "Ilustrada" publicou na quinta, 30 de março, uma análise do jornalista Silas Martí sobre o tratamento dado à questão racial na arte contemporânea. O texto foi construído tendo como ponto de partida os protestos em torno da obra "Open Casket", "da artista branca Dana Schutz" -palavras de Martí_ em exposição na Bienal do Whitney Museum.

    Assim como Martí, não gosto da obra em questão. Acredito que existem formas mais interessantes e cuidadosas de tratar o tema. Afinal, imagens de corpos negros mutilados já estampam nosso imaginário há muitas décadas.

    Concordo, em parte, quando o autor aponta a existência de uma tentativa no cenário artístico de "exorcizar pela arte um passado imperdoável de brutalidade e injustiça contra os povos negros, um histórico, no caso, que se arrasta em muitos aspectos até o presente". E, se concordo apenas em parte, é justamente por não acreditar que esse tratamento hipócrita esbarre em todos os trabalhos de artistas contemporâneos.

    Para Martí, "na falsa democracia racial que vigora por essas bandas, artistas antes vistos como brancos, pardos ou mestiços vêm se declarando só negros, contrariando a narrativa de uma miscigenação que tudo neutraliza -reflexo talvez da pressão de um mercado que descobriu uma moda perversa e passou a reduzir seus artistas a cotas de cor".

    Divulgação
    'Gaye com Folhas Gun' (2015), de Ayrson Heráclito; artista estará na Bienal de Veneza
    'Gaye com Folhas Gun' (2015), de Ayrson Heráclito; artista estará na Bienal de Veneza

    É preciso, antes de tudo, não cair em esquematizações apressadas que transformam artistas e mercado em massa homogênea. O lugar do negro nas representações nacionais já era um tema pungente na época do Império, embora Martí se esforce para transformar o problema em algo recente. O que muda agora é a presença cada vez mais constante de negros e negras ocupando espaços de fala, embora em número ainda bastante reduzido.

    É justamente a partir da ideia de modismo que o autor acusa o Masp de estar "surfando essa onda". Martí não considera que a "onda" possa ser também fruto de lutas históricas por representação. Qual seria a solução? Eliminar de vez corpos e debates negros da arte contemporânea?

    No livro "Pele Negra, Máscaras Brancas", Frantz Fanon chama atenção para um fato crucial: o racismo herdado do colonialismo se manifesta explicitamente a partir de características físicas, mas não só. A discriminação também se estabelece a partir da inferiorização de bens simbólicos daqueles a quem o colonialismo pretende subjugar.

    Se, na lógica cruel do racismo brasileiro, mestiços tentaram historicamente negar suas origens africanas, a descolonização do pensamento e das práticas passa obrigatoriamente por uma afirmação dessas origens.

    Mas, se ao negar essas referências, encontramos aí um foco de ação do racismo e ao afirmá-las estamos obrigatoriamente diante de uma ação de má-fé (que de fato pode existir), parece-me que estamos diante de um problema insuperável.

    Não fica muito claro o que o autor define como "apropriação cultural", ao sugerir que artistas negros também fazem uso da prática. Cooptados pelo mercado, eles seriam incapazes de agência própria.

    Fascinado pela cor dos artistas que analisa, Silas Martí não se apresenta em seu texto como um jornalista e crítico branco que ocupa um espaço de poder ao escrever sobre arte na Folha. É bem possível que, para ele, identidade seja apenas um problema do "outro".

    LEONARDO NASCIMENTO, jornalista e produtor cultural, pesquisa relações entre arte contemporânea e movimentos sociais, com ênfase no funk e em outras produções artísticas das periferias cariocas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024