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    Crítica

    'Tarântula' traz contra-assinaturas que rasuram Bob Dylan

    LEONARDO GANDOLFI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    11/04/2017 02h10

    Em meados da década de 1960, Bob Dylan expandia ainda mais sua radicalidade ao transformar o folk, música sobre a qual ele mesmo tinha jogado luzes. Naquele contexto, usar guitarras era um modo nada evidente de tornar vivo aquele gênero, na medida em que o fazia escapar de uma identidade fixa.

    Escrito no mesmo período e publicado só em 1971, "Tarântula" pode ser lido também a partir dessa fratura de identidade. Suas páginas trazem uma contra-assinatura que rasura o nome do ídolo pop que Dylan se tornara.

    Na verdade, são algumas contra-assinaturas que compõem as vozes deste livro, um dos poucos publicados pelo mais recente vencedor do prêmio Nobel de Literatura.

    Entre tais vozes, há vários bilhetes "pessoais" assinados por figuras estranhamente familiares, como "truman peyote", "Zorba o Bomba" ou "homero rasteiro".

    Depois desse povoamento, o nome do escritor comparece apenas como pedra tumular, autoepitáfio em que lemos: "aqui jaz bob dylan/ assassinado/ por trás/ por trêmula carne/ que após ser recusada por Lázaro,/ pulou nele/ por solidão".

    Num processo marcado pela afinidade com surrealistas e beats, Dylan justapõe imagens díspares, sem abrir mão da oralidade. A acumulação que resulta disso impossibilita ainda mais a ideia de uma imagem apaziguadora de si.

    É de maneira inquieta que a primeira pessoa textual "tenta então manter as vozes que esperneiam presas na mesa". Daí a presença de inúmeras referências sem aspas –entre as quais, trechos da Bíblia, canções de blues, versos de T.S. Eliot, etc.– tecendo uma colcha de retalhos que perturba a noção de escrita automática, comumente associada ao livro.

    Em outro instante, ouvimos o pedido: "que essas vozes se unam em agonia". Essa espécie de coro acaba por constituir, então, um autorretrato descentrado que passa longe das imagens em geral monumentalizadas da cultura pop, até porque, como diz o autor, "eu não posso assumir o nome de nenhum mártir".

    É como se fôssemos convidados para uma festa insólita: "te vejo no baile/ de máscaras". Por mais que tais máscaras caiam, os rostos não se revelam. Uma voz ecoa em nossa direção e, provocando-nos, ela completa: "vai/ ser muito fácil me identificar, então/ não venha dizer que não sabia que eu estava lá".

    A tal caráter provocativo junta-se ainda o registro do livro que hesita entre prosa e verso. Nesse sentido, ele tem como parente próximo, no Brasil, um livro contemporâneo seu como "Me Segura Qu'Eu Vou Dar Um Troço", de Waly Salomão, que também trabalha na contramão da escrita de si como porto seguro.

    Tarântula
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    Por fim, vale sublinhar a fluência da tradução de Rogério W. Galindo. Há momentos em que suas soluções são impagáveis, como nestes versos, que só poderiam mesmo terminar em gargalhada: "tinha um gorila trocando pneu lá fora,/ mas foi usar o macaco e pagou mico –hoje estou/ com a macaca, haha".

    TARÂNTULA
    AUTOR Bob Dylan
    TRADUÇÃO Rogério W. Galindo
    EDITORA Tusquets
    QUANTO: R$ 36,90 (136 págs)

    Edição impressa

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