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    Crítica

    Obra dos Racionais vira manifesto poético em 'Farinha com Açúcar'

    VALMIR SANTOS
    ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

    14/04/2017 02h04

    Leonardo Lima/Divulgação
    Jé Oliveira (ao centro) canta em montagem a partir de letras do grupo de rap Racionais
    Jé Oliveira (ao centro) canta em montagem a partir de letras do grupo de rap Racionais

    O educador Paulo Freire (1921-1997) viu e ouviu atentamente o cotidiano de populações empobrecidas para conhecer seus saberes. Era a partir dessa disponibilidade que o processo de alfabetização deslanchava.

    A desconfiança das palavras prontas gira a tramela da cultura para vislumbrar outras gramáticas da escrita e da fala. O rap que o diga.

    Esse pensamento é central em "Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens", a leitura do Coletivo Negro para aquilo que os Racionais MC's versam e conversam na discografia que chega aos 30 anos em 2018.

    O homem jovem ou adulto negro da periferia é retratado nas letras do grupo a partir do seu pedaço, a zona sul de SP, e da realidade histórica do país em relação a racismo e violência institucionalizados.

    Idealizador, dramaturgo e atuante do espetáculo, acompanhado de cinco músicos, Jé Oliveira carrega para a cena a carnificina da dor pelos assassinatos, sobretudo em conflitos com a polícia.

    Mas a essência do trabalho está na maneira como conjuga rito fúnebre e afirmação da vida enquanto ato criador. A capacidade de gerar por meio daquilo que lhe falta –entrelinha freiriana– condiz com os relatos que Oliveira colheu junto a 12 homens negros de diferentes idades (vendedor de livro, músico, modelo, poeta, professor, artista etc.).

    O narrador é conduzido à ancestralidade dos avós. Ao prazer da comida brotada da roça. À carestia dentro de casa com a tática da farinha de mandioca com açúcar para enganar a fome. Às brincadeiras de polícia e ladrão ou mãe da mula na rua de barro da cidade grande.

    À descoberta do gosto pela leitura via capa de disco, gibi e livros que fazem da rima o remo, para usar um dos jogos de aproximação recorrentes no texto.

    Jé Oliveira encontra no drama cantado dos Racionais a subjetividade masculina latente para conceber um manifesto poético.

    O disco "Raio X do Brasil" (1993) abre com a voz de Edi Rock saudando a liberdade de expressão: "Você está entrando no mundo da informação, autoconhecimento, denúncia e diversão".

    "Farinha..." acrescenta mais um substantivo, a poesia, também um recurso para contrapor-se ao ódio.

    O plano simbólico dialoga com a concretude da existência. Os músicos estão abrigados sobre pórticos cenográficos de casebres. Evocação indireta ao Jardim Zaira, populoso bairro de Mauá (SP).

    Oliveira é o homem singular e o narrador pensante em tempos de desilusão. A base musical intercala composições próprias e trechos de gravações dos Racionais em pick-ups comandadas por DJ.

    A musicalidade intensa dá ao legado dos Racionais a superação de obstáculos da vida por meio da palavra em seu sentido expandido.

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    Farinha com Açúcar...

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