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    Trio de artistas evoca samba e Albert Camus para enfrentar o absurdo

    FERNANDO TADEU MORAES
    DE SÃO PAULO

    17/04/2017 02h15

    O sentimento do absurdo, escreveu Albert Camus em "O Mito de Sísifo", é consequência do "divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário". Lidar com esse impasse existencial, acrescenta o filósofo e escritor francês, pode levar a atos extremos, como o suicídio.

    O músico Rodrigo Campos, 40, enfrentou essa questão de outra maneira: fez sambas.

    "O absurdo chegou na minha vida há uns cinco anos. Em alguns momentos cheguei a achar que as coisas não faziam sentido. O livro me fez reconhecer esse sentimento e imaginar que todo mundo talvez sinta isso em algum momento", diz Rodrigo.

    Ricardo Borges/Folhapress
    O compositor Rodrigo Campos
    O compositor Rodrigo Campos

    "Assim que terminei de lê-lo, tive o impulso de compor músicas. Queria registrar as sensações da leitura antes que me escapassem", completa.

    Sentiu, contudo, que precisaria de um parceiro. "Algo me dizia que não era para eu fazer as letras", diz. Convidou, então, o amigo, escritor e artista plástico Nuno Ramos, 57, para escrevê-las.

    Logo as canções ganhariam forma com a voz e a interpretação da cantora Juçara Marçal, 55, e os arranjos do compositor e produtor Gui Amabis, 40.

    Nascia o projeto "Sambas do Absurdo", cujo álbum será lançado no formato virtual no dia 28 de abril.

    Ricardo Borges/Folhapress
    A cantora Juçara Marçal
    A cantora Juçara Marçal

    GÊNERO EXISTENCIAL

    O trabalho é o resultado do encontro de alguns dos nomes mais relevantes da música popular brasileira contemporânea, cujos discos individuais têm recebido elogios da crítica nacional e atraído a atenção fora do país.

    Tocando cavaquinho e violão, Rodrigo Campos retorna, em "Sambas do Absurdo", ao gênero em que despontou com o seu primeiro disco, "São Mateus Não é um Lugar Tão Longe Assim", lançado em 2009. Vieram na sequência "Bahia Fantástica" (2012) e "Conversas com Toshiro" (2015).

    A escolha do formato samba para as atuais composições, diz Rodrigo, não foi à toa. "O samba é um gênero existencial por excelência, tem essa coisa do lamento. Você ouve Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, e percebe conceitos filosóficos depurados de uma maneira cotidiana."

    Ricardo Borges/Folhapress
    O arranjador Gui Amabis
    O arranjador Gui Amabis

    O propósito do trio, porém, era fugir do samba tradicional, torná-lo, justamente, "absurdo", a começar pelas letras -que não fazem referência direta ao ensaio de Camus.

    "O caminho, de fato, não foi o da citação. Ao contrário. As letras têm uma natureza associativa, de ideias e temas, que acabam dando a elas um ar meio abstrato", diz Nuno Ramos, que já teve canções gravadas por Romulo Fróes, Gal Costa e Mariana Aydar.

    Dividido em oito faixas, com os títulos sempre começando pela palavra "absurdo" seguida de numerais de 1 a 8 -indicando a ordem em que foram compostas- o disco, segundo Ramos, não é muito lógico. "É difícil saber, por exemplo, quem é que canta, quem é o sujeito lírico. As vozes vão se sucedendo ao longo do disco, às vezes é um cara apaixonado, em outra é uma pessoa na rua."

    Já Juçara Marçal conta que, em várias canções, optou por tons de voz que não lhe fossem totalmente confortáveis. "O desconforto fazia sentido para o resultado instável que queríamos atingir", diz.

    Também integrante do trio Metá Metá, com o qual tem três discos, a cantora lançou em 2014 o álbum "Encarnado", seu primeiro trabalho solo, que recebeu o prêmio de melhor disco do ano da Associação Paulista de Críticos de Arte. "Em todos esses trabalhos, como neste, o que me move é o desafio para a voz. Se não houver isso, não faz sentido", completa Juçara.

    Por meio de teclados e programação, Gui Amabis acrescenta uma atmosfera orquestral que dá às composições um tom obscuro e excêntrico. "A ideia era interferir nas canções, mas sem desviar a atenção da voz da Juçara."

    Segundo Amabis, os arranjos são compostos em um teclado Mellotron [instrumento cult criado nos anos 1960]. A isso ele acrescenta efeitos elaborados a partir de um banco de "samplers", que, com o auxílio do computador, passam por um processo de alteração do ritmo, inversão de notas e colagem de fragmentos.

    Com experiência na criação de trilhas para filmes e séries, Amabis já lançou três trabalhos solo: "Memórias Luso/Africanas (2011), "Trabalhos Carnívoros" (2012) e "Ruivo em Sangue" (2015).

    As inspirações para os arranjos seguem a mesma lógica absurda que permeia todo o trabalho. "Vão desde Dorival Caymmi, Rogério Duprat e Pedro Santos até Nick Drake e [o grupo indie contemporâneo] Dirty Projectors", diz.

    Absurdo 5

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