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    'Paixão Segundo S. João', de Bach, tem mais humanidade que antissemitismo

    JAMES R. OESTREICH
    DO NEW YORK TIMES

    17/04/2017 13h00

    Reprodução
    Detail from a Portrait of Johann Sebastian Bach (1748) by Elias Gottlob Haussmann
    Retrato de Johann Sebastian Bach (1748) de Elias Gottlob Haussmann

    Que Páscoa estranha. Tipicamente, no período que antecede à Páscoa, as duas Paixões sobreviventes de Bach, a de São João e a de São Mateus, costumam ser incluídas em um ou dois programas musicais de Páscoa em Nova York.

    Mas este ano, seja lá qual tenha sido o motivo, a "Paixão Segundo São João" foi encenada cinco vezes por grupos musicais importantes, e a "Paixão Segundo São Mateus" passou em branco. E nas últimas semanas também foram lançadas diversas gravações novas, todas da "Paixão Segundo São João", como que para enfatizar o ponto.

    Mas qual seria o ponto, exatamente? É verdade que a "Paixão Segundo São Mateus", executada pela primeira vez em Leipzig, Alemanha, em 1727, três anos da "Paixão Segundo São João", é uma obra maior e mais complexa, e mais difícil de apresentar, por conta de seus múltiplos corais e orquestras. Por outro lado, ela seria mais fácil de promover, por ser mais majestosa e não oferecer complicações ideológicas.

    Hoje em dia é quase inevitável que a "Paixão Segundo São João" crie controvérsia, com seu uso cru das palavras do Evangelho de João, que acusam "os judeus" de serem os principais instigadores da morte de Jesus. A peça retrata vividamente o embate entre Jesus e seus acusadores, e Pilatos, o prefeito romano, se torna uma figura quase simpática, se envolvendo em escaramuças verbais com os "altos sacerdotes e servos", que gritam "crucifique, crucifique" diante de um fundo orquestral frenético, revelando sua sede de sangue de maneira quase palpável em harmonias escarnecedoras.

    Mesmo para aqueles que a apreciam, como eu, a "Paixão Segundo São João", como escreveu recentemente Alex Ross na "New Yorker", "continua a ser um pouco assustadora". Robert Shaw, regente de corais norte-americano, era um humanista laico que amava ardentemente a "Paixão Segundo São João" e a conduziu inúmeras vezes ao longo de sua carreira. Em 1995, ele resumiu o problema que os devotos de Bach têm de enfrentar: "Muitos de nós jamais deixarão de sentir embaraço diante de suas atribuições raciais veementes e/ou violentas quanto à crucificação de Jesus. Não pode haver dúvida de que o texto tradicional usado na peça reforçou as ondas de antissemitismo nas gerações e séculos que se seguiram á sua composição".

    Como isso sugere, e como o musicólogo Michael Marissen confirmou em uma palestra que abriu a apresentação da "Paixão Segundo São João" pelo coral Tenet e pelo grupo instrumental de época The Sebastians, na Igreja Luterana Alemã de St. Paul em Chelsea, em 25 de março, os problemas quanto à peça se agravaram nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Com o horrível potencial latente de qualquer forma de antissemitismo cada vez mais aparente, qualquer execução da peça deve ser causa de reflexão sóbria e não apenas de prazer irrefletido.

    Será que o retrato feroz que a "Paixão Segundo São João" faz dos judeus deve ser considerado simplesmente como trabalho de um mestre da narrativa musical? Isso é certamente verdade, mas a questão não se resume a esse aspecto. A atitude de Bach fica clara em sua música e na poesia dos coros e árias com os quais ele cerca a narrativa de João.

    Um dos primeiros corais, por exemplo, dirige a Jesus, ferido, a pergunta "Wer hat dich so geschlagen" - quem o golpeou assim? A resposta, logo em seguida, é " Ich, ich und meine Sunden": "Eu, eu e meus pecados", e, com esse "eu", o autor quer dizer todos nós, protestantes, católicos e judeus igualmente.

    Nesse ponto, como indica Marissen em seu livro "Bach and God" (2016), o compositor "transfere o foco da perfídia 'dos judeus' para os pecados dos crentes cristãos". E a obra como um todo se movimenta em um arco épico, da inquietação a uma profunda sensação de solidariedade e consolo, da desumanidade ressaltada para fins estéticos a uma humanidade sentida e registrada profundamente.

    A produção Tenet-Sebastian foi um exemplo deslumbrante, e pode ser considerada como de longe mais convincente entre as apresentações recentes da peça em Nova York. O projeto surgiu um ano atrás como uma espécie de esforço coletivo liderado por Jolle Greenleaf, diretora artística do espetáculo, e Jeffrey Grossman, seu diretor musical. O coral de 12 pessoas foi empregado na forma de três quartetos que se movimentavam independentemente em torno do altar, muitas vezes fazendo contato próximo com a audiência em um ambiente intimista, cantando em unidades separadas ou combinadas, nos momentos de maior intensidade.

    Para reforçar o ponto teológico da culpa compartilhada, naquele momento crucial da peça - "Wer hat dich so geschlagen" - quatro cantores fizeram a primeira pergunta em um deslumbrante pianíssimo e em seguida os três quartetos se uniram para responder, com toda força dos pulmões, confessando que "eu, eu e meus pecados".

    Seria agradável dizer que uma nova gravação pelo coral do King's College, de Cambridge, e pela Academy of Ancient Music, dirigida por Stephen Cloebury e lançada pelo King's College, representa melhor a tradição - e a gravação, além do excelente Evangelista de James Gilcrhist, conta com o comovente Cristo de Neal Davies. Mas o registro oferece pouco mais imaginação e ímpeto do que poderíamos esperar, por exemplo, do St. Thomas Choir of Men and Boys, um coral nova-iorquino muito querido.

    O coral em questão conseguiu contornar as guerras quanto a Bach, na temporada atual, porque Daniel Hyde, que foi assistente de Cleobury em Cambridge, decidiu encenar para a Páscoa, em sua primeira temporada como diretor musical da Igreja de St. Thomas, na Quinta Avenida, a mais modesta "Paixão Segundo São João" de Carl Philipp Emanuel Bach, o segundo filho de Bach, composta em 1772. C. P. E. tinha por tarefa compor uma nova Paixão a cada ano, em Hamburgo, e o fez sempre em estilo eclético.

    A peça contém música atraente e original, mas nada envolvente a ponto de despertar consternação especial ao mencionar "os judeus". E tudo isso fica à sombra quando C. P. E. simplesmente rouba o coro culminante de seu pai, o magnífico "Ruht wohl" ("repouse bem"), uma homenagem claramente nascida do desespero.

    Entre as outras gravações novas da "Paixão Segundo São João" de Bach, uma é excelente, e serve como boa escolha, pelo menos até que o Tenet produza algo melhor. A gravação documenta apresentações do Apollo's Fire, grupo dirigido por Jeannette Sorrell, em Cleveland e Nova York, no ano passado. As gravações, notáveis pelo Evangelista de Nicholas Phan, pelo Jesus de Jesse Blumberg e pelas árias da soprano Amanda Forsythe, são um relato muito bem considerado, e apresentado com talento e técnica consumados.

    Foi maravilhoso ouvir tantas variações da "Paixão Segundo São João" este ano. Mas no ano que vem, que tal pelo menos uma encenação da "Paixão Segundo São Mateus?"

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